
Há uma aparente contradição no técnico Celso Juarez Roth, 56 anos, tido como retranqueiro no campo, no diálogo e na convivência. O Celso desta entrevista realizada no café de um hotel de Porto Alegre criticou o futebol exageradamente defensivista de hoje ("E falavam de mim, hein!"), já deu palestra (em inglês) na famosa escola de futebol italiano de Coverciano e confessou seu prazer pelo cinema, teatro e música clássica ("Ouvindo na plateia eu viajo, fico completamente fora do chão").
Encanta-lhe a disciplina dos músicos que, segundo ele, serve de exemplo ao futebol e à vida. Considerado um técnico socorrista de times em apuros, com três passagens pelo Inter (e o título de uma Libertadores), três períodos pelo Grêmio (o último deles em 2011) e desde o final de agosto desempregado, depois de desligado do Coritiba, Roth se prepara para a chance em algum clube italiano, porque, afinal, já dirigiu 30 clubes em 26 anos de carreira.
É pai de um casal de filhos, de 28 e 23 anos, e aceita com humor o fake Juarez Roth no Twitter ("Eu me divirto com as piadas"). Também gostou do embate entre os candidatos Dilma Rousseff e Aécio Neves: "O país cresce passo por passo".
Como você se classificaria: um desempregado ou um especialista à espera de oportunidade?
Eu estou desempregado, como está o Osvaldo de Oliveira, o Tite, como esteve há pouco o Luxemburgo - assim é o ambiente do treinador. Nós ainda podemos ficar parados, mas não é o caso da maioria dos colegas. Incomodado, eu? Não, não. Claro, a gente quer trabalhar sempre, embora seja necessário dar um tempo, reciclar, porque é preciso ir ao cinema, ao teatro, ao show.
O que faz um técnico com o tempo livre?
Depende. Eu tenho outras questões profissionais, pessoais, a família bem equilibrada, outras situações em Caxias do Sul, onde nasci e onde tenho parentes e negócios. O tempo livre mesmo é da família.
Você também é um investidor...
Pode ser. É o que o futebol nos proporciona.
É muito futebol pela TV?
Já assisti mais, porque a carga é grande. No sábado (véspera da eleição de segundo turno), havia jogos das 10h até as 23h.
Deixaria de ver um jogo para ir ao cinema?
Fiz isso no sábado. Vi O Juiz. Deixei de assistir aos jogos das 21h (Inter x Bahia e Botafogo x Flamengo). Eu gosto de teatro e de música clássica, embora seja um leigo. Eu não sou entendedor, mas a música me faz sentar numa plateia e apreciar porque ouço a execução e presto atenção na disciplina dos músicos, que entram no seu momento exato. Mal comparando, essa disciplina podia ser a do futebol e da vida. Eu viajo sentado na plateia, naquele ambiente maravilhoso, principalmente no Teatro São Pedro. Às vezes, fico completamente fora do chão, consigo sair um pouco do meu eu. Mas faço isso normalmente. Domingo à noite, fui a um show do Renato Godá, um músico de São Paulo que veio no aniversário do Carpinejar (Fabrício, o poeta) em um café e saí às 23h. Então, eu tenho os meus momentos com a mulher. Porque a vida do futebol é circense, não se para em lugar algum.
Como é a vida circense de treinador?
É muito solitária, complemente solitária quando se está fora da sua cidade. Se engana quem acha que estamos sempre rodeado de pessoas. Na concentração, no clube, fica-se muito sozinho.
Quantas horas você trabalha por dia quando em atividade?
Da hora que levanta até o momento de dormir. São 16 horas seguidas.
Assustam os problemas de saúde que afetaram os técnicos Muricy Ramalho, Guto Ferreira, Joel Santana, Ricardo Gomes?
Isso é reflexo da função, mas não assusta, a pressão não é nova. Novo é a quantidade de câmeras de TV que vigiam o técnico e os jogadores em campo. Não se pode fazer mais nada, estamos mais expostos, e isso aumenta a tensão. Como administrar? No vestiário ainda há condições, depois que se vai para casa, não se controla mais nada. Se o técnico não tiver equilíbrio geral, estrutura, boa formação, família, condição econômica bem-feita, vai administrar aqui e ali, mas vai sentir dor em algum lugar.
Você é o único retranqueiro?
Pô (risos), com o futebol que anda por aí, eu, o único? Fui assistir à Copa da Alemanha, em 2006, e lembro de jamais ter visto tanta retranca. De lá para cá, só piorou. Não existe retranca maior do que o 4-2-3-1 que todos usam hoje. Festejava-se muito o Bianchi (Carlo, técnico argentino, tri da Libertadores e bi Mundial de Clubes pelo Boca Juniors), e ele usava um ortodoxo 4-4-2, fazendo um dos atacantes fechar no meio, e ele é o maior vencedor. Aliás, temos só 14, 15 treinadores que ganharam Libertadores no Brasil (risos, em referência ao seu título pelo Inter, em 2010). E ainda se considera o 3-5-2 retranca. Não é, não. É mais uma daquelas coisas absurdas que ficam valendo como verdade.
O futebol está mais chato? Fechado, cheio de assessores, blindado?
O que se restringe é a saída da informação. Por exemplo: você está passando algo confidencial no vestiário, e estão lá os dirigentes, os assessores, o supervisor, e não se sabe se aquilo fica ali. Não dá para controlar. A menos que permaneça só os jogadores no vestário, e assim mesmo não há garantia de segredo, porque todos têm assessoria de imprensa, redes sociais. Pessoal fala uma coisa aqui e ali e acaba vazando uma informação sem querer. Não há como blindar o vestiário, é um local aberto, há muitos interesses em torno dele, mas se tenta restringir. Nos treinos, eu só fecho à imprensa perto de jogos importantes. Hoje todos fecham tudo, e ainda falavam de mim.
Mudou muito a relação do treinador com o seu jogador, mais endinheirado?
Mudou, sim. Os jogadores têm hoje mais poder e quase se equiparam a um técnico. Com a Lei Pelé (que retira o passe do clube e dá ao atleta), nasceu essa categoria de atletas renomados que têm uma força que não havia antes. Tudo porque agora o jogador pode negociar o que vai fazer com a sua vida, pode ir de um time a outro, e o clube se obriga a fechar contratos de dois anos, no mínimo. Vencendo o primeiro ano, se der retorno, tem de renovar por mais dois, porque existe o apelo da torcida e da imprensa. Estamos todos à mercê desse poder. Do alto da pirâmide, o treinador acabou caindo para a ponta menos importante. Até então (com a velha Lei do Passe), havia hierarquia, o clube era dono do passe. Eu sou a favor da Lei Pelé, mas ela está em transição.
O treinador está mais sujeito a resultados?
Se ele consegue resultado de campo, continua com poder. Do contrário, na hora da má fase, o clube põe na balança e calcula o que é mais importante: ou o jogador que já assinou dois ou três contratos e que é um patrimônio - em um grande clube são quatro, cinco, seis grandes nomes - ou o treinador, que é um só, já enfraquecido de poder.
E o técnico forte, de personalidade?
Está fora de moda. O treinador de opinião forte, aquele comandante que todo mundo quer, hoje é conciliador, por causa dessa relação com o novo poder do seu jogador famoso. O técnico hoje não toma nenhuma atitude imediata, vai levando, deixa as coisas acontecerem com os jogadores (os das séries A e B do Brasileirão). A estrela hoje se equipara a um treinador, que continua e vai continuar sendo o cara do vestiário, porque decide quem joga, quem não joga, é a última voz. Mas o técnico hoje está mais vulnerável.
Como pensa o dirigente na má fase?
Na hora do mau resultado, do conflito de opinião, o dirigente pensa nos seus 30 jogadores e seus contratos. Baila o treinador, que é essa pessoa já enfraquecida de poder.
O empresário do jogador ajuda ou atrapalha?
Ele é o representante desse jogador mais forte, e também cresceu. Às vezes, ele toma outros caminhos e repassa informações que interessam ao seu jogador e ao seu negócio e que não interessa à atividade, ao clube. Se eu sou representante de alguém, e esse alguém está fora do time, eu vou passar uma informação na rede social, verdadeira ou não, e levanto polêmica. O treinador escolhe o seu titular pelo dia a dia e por variáveis técnicas. Vai o intermediário entender isso?
Dá para explicar os 7 a 1 da Alemanha?
Nós levamos 7 a 1 da Alemanha e ninguém sabe explicar por que. Como não sabe? Há muito tempo o Brasil é formador de jogadores. Quem tem essa característica vai, vai, vai até cair, mesmo que ainda tenhamos a melhor mão de obra do mundo. Acontece que chegamos a um ponto em que a distância do formador (Brasil) e do comprador (Europa) ficou muito grande. O comprador já pega formado. Tem de ter cuidado, já não é possível comparar uma coisa com a outra.
Mas os jogadores da Seleção Brasileira na Copa atuam na Europa...
Aí está uma contradição: está bem, estavam na Europa, vieram daquele mercado, então não culpem o futebol brasileiro! É a mesma situação dos técnicos brasileiros, nós carregamos nas costas o resultado de 7 a 1 junto com o Felipe (Luiz Felipe Scolari), porque somos treinadores brasileiros e porque ele é amigo nosso. A gente é culpado?
Quem condenou os treinadores?
Vocês (da imprensa), depois dos 7 a 1 diante da Alemanha, fizeram qualquer coisa fantástica. Disseram que o técnico brasileiro não tem condição, não tem conhecimento. Mas se o Brasil tivesse sido campeão, o Felipe teria sido o vencedor sozinho. Como perdeu, culpam todos os técnicos. Tem mais: o Brasil forma jogador, não cidadão. É uma grande falha. O cara passa de R$ 700 para R$ 10 mil em um mês, e daí para R$ 50 mil, R$ 100 mil em seis meses. Quem tem estrutura para isso?
Perdemos a Copa do jeito que perdemos também por falta dessa estrutura pessoal?
Também. Os alemães vieram à Copa se dedicando exclusivamente à competição, mesmo que estivessem com as mulheres - e mulheres e família formam um ambiente sadio ao futebol. Por que os casados não convivem com a mulher nos clubes ou na concentração do Brasil? Porque não temos educação para isso. Temos de mudar isso. O 7 a 1 é também consequência disso.
O que é no dia a dia essa falta de estrutura do brasileiro?
Ah, porque tem muita gente de fora no treino, ah porque o menininho entrou lá e vamos todos abraçar o menininho, ah porque o jogador fica até de madrugada com o celular nas redes sociais. Cara, quando você se propõe a fazer algo, numa Copa do Mundo, você tem um objetivo, deixa o celular de lado, você sabe que não é o momento, e o treinador nem precisa vigiar.
Vem daí a necessidade do treinador durão e da cartilha do Dunga na Seleção?
Outro dia me ligaram para comentar a cartilha do Dunga (recém-lançadas normas de comportamento que vetam o uso de chinelos, brincos, bonés, celulares e manifestações políticos-religiosas a convocados da Seleção), e eu disse: perguntem ao Dunga. Cartilha é coisa antiga. Agora, quem exige disciplina recebe rótulo de durão. Todos os clubes têm cartilha, problema é cumprir. Se não se tem educação, como cumprir? Estamos falando de um país jovem como o Brasil, futebol não é uma ilha. Na Europa, eles já foram ao fundo do poço, têm regras e cumprem, até sob pena de ser preso.
E os cursos de gestão, bastante em moda hoje?
O treinador é gestor do clube e administrador de vários técnicos (risos)... Sim, porque cada torcedor age como um técnico, dá opinião como se estivesse trabalhando no dia a dia do clube e informado de tudo que ali acontece - e isso é ótimo, é por isso que o futebol tem esse glamour. Também por isso o treinador ganha bem. Com relação aos cursos disso e daquilo: não existe nada que substitua o conhecimento da pessoa. Há cursos e congressos que podem orientar e melhorar a metodologia do trabalho, mas quem faz o conteúdo é você, a maneira é sua, as suas experiências ninguém tira.
Depois da derrota na Copa, falava-se da falta de intercâmbio com a Europa.
Durou uma semana isso, não é? Depois trouxeram um técnico argentino que trabalhou no Palmeiras e deu no que deu (foi demitido antes de três meses). Cada um tem a sua realidade. Um treinador da Europa pode dar certo aqui? Pode. Como o técnico brasileiro pode dar certo na Europa. O Vanderlei (Luxemburgo) não foi bem no Real Madrid, o Felipe foi muito bem em Portugal e teve problemas no Chelsea.
Você tem viajado para troca de experiências?
Conversei algumas vezes principalmente com o técnico Fabio Capello (técnico da seleção da Rússia), e tive outras experiências na escola de treinadores italianos de Coverciano, muito forte na Europa. Lá, eles acreditam que nós somos difíceis de lidar. Além da língua, por termos cinco títulos mundiais, nós nos consideramos os melhores, ou a gente passa essa visão para os europeus. E nós não procuramos o intercâmbio. Só agora os treinadores fazem uma viagem de turismo, diz que foi a um clube e falou com fulano. É muito pouco. Temos que conviver, trocar ideias - que é um outro problema. Os treinadores do Brasil falam muito, mas não falamos conosco, não temos uma classe.
Por que os técnicos argentinos se dão bem na Europa?
Poucos técnicos brasileiros dominam o inglês, e o argentino viaja mais e têm a facilidade do espanhol e uma origem italiana que lhes possibilitam encarar clubes italianos. Além disso, eles se comunicam mais e participam do mercado e começam em clube menor e galgam posições. Nós não fizemos isso. Para o brasileiro, é mais difícil, e eu estudo italiano e entendo muita coisa. Embora não fale direito.
Eu estava em um escritório em Milão e, por acaso, chegou um representante do Lampard (meia do Manchester City). Conversamos em inglês, e eles se surpreenderam com o meu inglês. Falo, sim, desde quando fui ao Kuwait em 1988 como auxiliar para traduzir as palestras do Luiz Felipe. Foi lá que iniciei a carreira de treinador (são 26 anos como técnico).
Você foi para a Itália, não?
Fui no ano passado. Passei 14 dias à convite de um grupo de empresários italianos. Eles têm relatório do meu trabalho no Brasil, como todos têm. Os europeus são muito bem informados sobre o que acontece aqui. Então eles queriam me conhecer melhor, trocar informações, e fiz contatos de trabalho na Itália. Já estive muito perto de treinar o Torino e a Roma no ano passado.
Continua cotado na Itália?
Hoje nós temos muita oferta de treinador e pouco dinheiro devido à crise mundial, agora agravada na Europa. O futebol italiano não é mais de primeira linha, então estivemos lá para conversar. Quando fui para a Itália, o Brasil ainda pagava salários enormes aos treinadores, e me perguntaram o que você está fazendo aqui se no seu país se pagava melhor do que na Europa. Eu disse: profissional que tem visão entra num mercado como o europeu na hora da crise. Quem entra na hora boa são algumas exceções, que passaram por seleção. Essa é a lógica de qualquer tipo de mercado - e só pode fazer isso quem está com equilíbrio econômico.
Não é absurdo salário de R$ 300 mil, R$ 400 mil, R$ 500 mil no Brasil?
Não acho absurdo, a responsabilidade está adequada. O que faz girar o mundo hoje? Turismo, indústria e área esportiva, puxada pelo futebol. Portanto, é absurdo em relação à realidade do país, mas não em relação ao que move de riqueza a atividade futebol. Se o funcionário do clube ganha o mínimo de R$ 724, aí é uma disparidade enorme.
Como você viu as últimas eleições?
Eu achei uma vitória da democracia, a disputa organizada, ferrenha dos dois lados, não vi muitos pontos diferentes de um lado e outro (eleição nacional) em termos de projeto e planejamento, foram parecidos, todos com seus defeitos e coisas boas. Assisti a um debate, e depois não precisava mais assistir a nada. Um exemplo de vitória foi aqui no Rio Grande do Sul. Mesmo o governo estadual indo bem, não se continua - e acho que a Dilma (Rousseff) e o Aécio (Neves) eram excelentes candidatos. E a Dilma, que certamente é muito inteligente, vai analisar o resultado estreito e rever suas posições, procurar a unidade, como disse. Porque o Aécio sai fortalecido para uma próxima. Eu achei saudável o confronto acalorado.
Como é o ambiente com Caxias do Sul, com Sartori?
Eu apenas vou a Caxias e volto. O Sartori é um pouco mais velho, tive relação com o Pepe (Vargas, ex-prefeito de Caxias, reeleito deputado federal pelo PT), dos tempos de faculdade. Mas acho que o Sartori vendeu um marketing do que ele é: uma pessoa simples, o estigma do gringo, que fala o que acha, e por isso se elegeu. No Estado o povo demonstrou que quis mudança. O povo brasileiro está se educando, e quem não prestar atenção nisso não se reelege.
Você já sofreu discriminação?
Nunca tive problemas de discriminação, convivo muito bem em Caxias. É que eu fui junior do Flamengo (hoje SER Caxias) com 16 anos e com 17 fui profissional no Juventude. Quem faz a diferença é você.
*ZH Esportes