Ao lado do muro de separação de Israel, a estrutura enegrecida de uma fábrica conhecida pelos palestinos locais como a estação, serve de esconderijo para traficantes de drogas e viciados. Diante dela, numa curva da estrada, lixo apodrecido queima num aterro sanitário não oficial enquanto crianças voltam para casa ao deixar a escola primária.
A sujeira e o caos no bairro de Ras Khamis, na Jerusalém Oriental, representam o submundo feio da batalha por Jerusalém, enquanto Israel e palestinos brigam por seu futuro.
Nessa última década, diversos prédios de apartamentos baratos, muitos com 12 andares, subiram em vários bairros palestinos como Ras Khamis, bem ao lado dos limites da cidade de Jerusalém, mas isolados pela barreira que Israel construiu ao longo ou através de partes da Cisjordânia com o propósito declarado de impedir a entrada de homens-bomba.
Os prédios foram construídos sem autorização, sem obedecer às normas de segurança e sem contar com infraestrutura adequada. Negligenciados pela prefeitura e pelo governo israelense, não existem serviços municipais regulares nem policiamento. Porém, a Autoridade Palestina, que exerce controle limitado em trechos da Cisjordânia, não pode atuar em Ras Khamis porque Israel se considera soberano em todas as partes da sua capital.
As construtoras dominam por aqui, improvisando ligações a redes inadequadas de água e esgoto que desmoronam sob o impacto.
Não existe uma cifra exata de moradores nos bairros do outro lado do muro, onde, além de Ras Khamis, ficam os campos de refugiados de Shuafat, Ras Shehada e Dahiyat al-Salam, e o enclave separado de Kufr Aqab nos arredores de Ramallah. Contudo, estimativas palestinas e israelenses avaliam a população em cerca de 120 mil pessoas.
O que significa que aproximadamente um terço dos moradores palestinos de Jerusalém Oriental - território anexado por Israel após a guerra de 1967, contra a opinião pública internacional, e que os palestinos reivindicam como a capital de um futuro Estado - agora vivem num limbo político e burocrático. O acesso ao resto da cidade é completamente controlado em pontos de verificação.
Khader Qawasmeh, de 42 anos, motorista de ônibus, disse que, na sua infância, quando se mudou para Ras Khamis, viviam ali cerca de 30 famílias. Agora, seu bairro superlotado abriga aproximadamente 20 mil pessoas.
- É uma terra de ninguém. Os israelenses não se importam e a Autoridade Palestina não tem autoridade aqui. As pessoas construíram casas no meio da rua, afirmou Qawasmeh. Citando problemas como drogas, assassinatos e roubos à mão armada, ele disse que as forças de segurança israelenses só vêm à noite para prender jovens arruaceiros.
- Isto é o submundo, ele disse.
A maioria se mudou para cá porque a habitação ilegal é menos cara do que a disponível depois do muro no resto de Jerusalém Oriental, onde apartamentos são escassos e as autorizações para construir, difíceis de se obter. Tecnicamente, os moradores continuam em Jerusalém, perto dos empregos, e podem manter os cobiçados cartões de identidade e os benefícios sociais israelenses, os quais podem perder caso se mudem para a Cisjordânia.
Porém, a situação complicada desses bairros esquecidos surgiu nos programas públicos no mês passado, quando moradores de Ras Khamis e das áreas vizinhas reclamaram que a água parou de chegar.
Com a ajuda da Associação pelos Direitos Civis de Israel e do Centro da Comunidade Suburbana de Jerusalém, ONG criada por Israel para coordenar os bairros além da barreira, uma dúzia de ativistas locais entrou com uma ação na Suprema Corte de Israel. Na audiência realizada dia 2 de abril, pediram que a prefeitura, o governo e as autoridades hídricas restaurassem prontamente o fornecimento de água.
Em resposta, a prefeitura contou ao tribunal que a barreira de separação e a falta de escolta de segurança permanente dificultavam a manutenção da ordem pública e o fornecimento de serviços regulares.
As autoridades hídricas afirmaram que aproximadamente 80 mil pessoas estavam ligadas a um sistema construído originalmente para perto de 15 mil habitantes, que as ligações clandestinas levaram a sérias quedas na pressão da água e que não havia verba para construir outra rede.
A Hagihon Co., responsável pelo fornecimento de água em Jerusalém, afirmou que somente 263 residências ou entidades representando 2.244 indivíduos estavam registradas como consumidores de água. A maioria das casas não tem hidrômetro e a falta de nomes nas ruas e de números nas casas aumenta a dificuldade. Dez dos 12 moradores que fizeram a petição não estavam registrados como consumidores, segundo dados da empresa, e os outros dois apareciam como clientes inativos.
Além disso, muitos residentes não pagam conta de luz nem impostos municipais.
- Por que eu deveria pagar?, questionou um vizinho de Qawasmeh, apontando para os degraus lotados de lixo que saem da viela diante da sua porta de frente. O homem, que se identificou apenas como Muhammad, afirmou trabalhar para uma empreiteira instalando canos de água em Jerusalém Ocidental. Enquanto falava, ele encheu um grande tanque preto no porão usando um cano plástico vindo da viela com água que afirmou ser roubada da Colina Francesa, bairro judeu vizinho.
Muitos consideram a ausência de policiais como crítica. Jamil Sanduka, líder do comitê de moradores de Ras Khamis, afirmou que quando chama a polícia israelense, escuta que deve comparecer ao ponto de controle ou à delegacia de um bairro judeu vizinho. Há pouco tempo, ele telefonou para relatar uma facada num cabeleireiro e que a polícia lhe mandou enviar uma fotografia da cena do crime usando o WhatsApp, serviço para troca de mensagens entre smartphones.
Colin Hames, diretor do Centro da Comunidade Suburbana de Jerusalém, afirmou que a falta de policiamento regular dava a outras agências israelenses uma desculpa fácil para não entrar nessas áreas. Hames atualmente trabalha para criar equipes locais de emergência. Indagado se estava preocupado com a chance da queda de um prédio, ele respondeu: - A questão não é se, mas quando.
Embora não afirmem publicamente, as agências israelenses também relutam em investir nos bairros porque seu futuro é incerto. Muitos israelenses e palestinos presumem que Israel um dia vai entregar essas áreas populosas à Autoridade Palestina na Cisjordânia.
Dois anos atrás, Rania Abu Shukkur, 34 anos, mãe separada de uma criança pequena, comprou um pequeno apartamento num prédio novo em Ras Khamis, perto do muro. Ele custou aproximadamente US$ 55 mil, menos de um sétimo do preço de um apartamento legalizado em Jerusalém Oriental. Ela fez um empréstimo num banco israelense, zerou a poupança e vendeu suas joias, e ainda deve à construtora perto de US$ 14 mil, com parcelas pagas mensalmente.
O acesso ao prédio de 11 andares se dá por meio de uma construção perigosa. O poço da escada não foi acabado, com paredes de concreto áspero e fios expostos, sem lâmpadas. Não existe elevador. Dentro do apartamento, água e eletricidade vêm e vão.
Abu Shukkur disse não ter contratos nem documentos para provar que havia adquirido o apartamento. Como o edifício fica muito próximo do muro, os moradores afirmam que Israel pode vir a demoli-lo.
- Eu me arrependo do que fiz. Quando tiver acabado de pagar, o prédio vai ser demolido e vou me tornar uma sem-teto., disse Abu Shukkur, sorrindo ironicamente.

