
Na primeira eleição após a morte do líder Nelson Mandela, nesta quarta-feira, a África do Sul prepara o futuro sem o homem que promoveu o fim do regime segregacionista do apartheid. O Congresso Nacional Africano (CNA), no poder, vem perdendo terreno desde a vitória de Mandela em 1994, mas deve vencer as eleições, apesar da decepção de milhões de eleitores.
Mais de 25,3 milhões de sul-africanos devem eleger 400 deputados, que designarão o próximo presidente em 21 de maio. Jacob Zuma, 72 anos, no poder desde as eleições de 2009, deve ser reconduzido ao cargo.
As pesquisas apontam pouco mais de 60% de intenções de votos para o CNA, o que garante uma ampla vitória, mas abaixo dos 65,9% votos obtidos há cinco anos. A África do Sul é um "lugar melhor para se viver do que em 1994", no final do apartheid, repetiu o partido na campanha, vinculando-se a Mandela e às melhoras nos índices sociais, apesar da persistente desigualdade. "Temos uma boa história para contar", costuma dizer Zuma.
Um problema o candidato à reeleição é que seu governo foi marcado por escândalos, como o das obras em sua residência, e a ação da polícia, que abriu fogo contra os grevistas da mina de Marikana, em 2012, matando 34 pessoas. Na oposição, a Aliança Democrática (DA, liberal) deve ganhar terreno, com 20% dos votos. A imagem de "partido dos brancos" continua forte, mas a DA conseguiu unir outras minorias, como índios e mestiços.
- Exigimos menos corrupção, melhores serviços e mais emprego - diz sua líder, Helen Zille.
No outro lado do espectro político, está o partido Combatentes pela Liberdade Econômica de Julius Malema, com entre 4 e 5% das intenções de voto. Reabrindo debate que a reconciliação dos anos Mandela sufocou, ele retomou o programa que defendeu quando liderava a juventude do CNA, antes de ser expulso em 2012: redistribuição de renda, nacionalização de minas e bancos e tomada das terras de brancos.
Boinas vermelhas e desconfiança
Entre os fenômenos que emergem dos 20 anos de democracia sul-africana, está um negro de 33 anos com boina vermelha e que pinçou exemplos em três continentes para se apresentar como "novo libertador". É Julius Malema, líder do partido Economic Freedom Fighters (EFF), algo como "combatentes pela liberdade econômica", criado há 10 meses. Quer "finalizar" a transformação iniciada por Mandela. Ele não deverá ser o próximo a governar a África do Sul, mas é o fato novo desta eleição.
Expulso do CNA por incitar o ódio racial - em um episódio estimulou jovens a cantar Dubula iBunu (atire nos bôeres, os fazendeiros brancos de ascendência holandesa) -, Malema responde a processo por fraude e lavagem de dinheiro. Mesmo assim, diz que seu maior inspirador é Thomas Sankara, ex-presidente de Burkina Faso assassinado em 1987 e lembrado pela austeridade. A boina disseminada entre seus seguidores - em geral negros, pobres e nascidos após as eleições históricas de 1994 - tem uma pitada venezuelana. Malema evoca Hugo Chávez para defender o anti-imperialismo e as nacionalizações.
Também sustenta a desapropriação de terras nas mãos dos brancos citando Robert Mugabe, no poder há 24 anos no Zimbábue, e enaltece o maoísmo chinês. O que faz do EFF um fenômeno não são os atributos pessoais de seu líder, mas as chagas de uma democracia tardia em um país onde 80% da população foi, por décadas, considerada subcidadã.
O CNA sem Mandela se perpetua no poder mais por falta de alternativas do que por aprovação, dizem os analistas. A segunda colocada nas pesquisas, Helen Zille (da liberal Aliança Democrática, a DA), que governa a província do Cabo, tem potencial para abocanhar novas fatias de eleitores, mas é considerada liberal em um país onde um quarto da população se beneficia de subvenções sociais. A oposição do DA é, mesmo com negros entre seus principais quadros, identificada ainda como "branca" demais por uma maioria que há apenas 20 anos sentiu na pele o valor de poder, pelo menos, votar.
*A jornalista morou de 1994 a 1995 na África do Sul e foi enviada especial de ZH ao funeral de Nelson Mandela