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Radicais no divã

Reaproximação entre Cuba e EUA tende a esvaziar discursos ideológicos mais inflamados

Tanto anticomunistas quanto antiamericanos terão de passar por uma profunda reflexão, avalia especialista

Léo Gerchmann

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ADALBERTO ROQUE / AFP
Passa pelas ruas de Havana a expectativa de uma visão mais tolerante sobre diferentes ideologias

Quando os jornais do mundo inteiro abrem páginas e mais páginas para tratar do reatamento de laços diplomáticos entre dois países, o que justifica isso não é a possibilidade de mudança no regime de uma ilha socialista de 11 milhões de pessoas. Tampouco a surpreendente guinada de comportamento da maior potência do mundo. Se fosse assim, algumas linhas no dia do fato bastariam. É muito mais. O importante é o símbolo histórico e seus desdobramentos práticos: muito já se diz que o planeta não pensará mais do mesmo jeito.

- O mundo, certamente, ficará menos maniqueísta, e muita gente terá de rever conceitos - projeta o professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) Antonio Jorge Ramalho.

Tanto anticomunistas quanto antiamericanos terão de passar por uma profunda reflexão, diz Ramalho. O principal impasse, porém, atinge a esquerda, em especial a dita mais radical. Analistas lembram a imagem de Hugo Chávez, o então presidente venezuelano, dizendo-se "irmão ideológico" do colega iraniano Mahmoud Ahmadinejad, responsável por um regime marcado pela perseguição de gênero e a minorias. O laço a unir os dois líderes era, além do petróleo, o sentimento antiamericano.

- Esse discurso já vinha se esvaziando por parte de figuras da esquerda mais moderada, como Michelle Bachelet (presidente do Chile), José Mujica (presidente do Uruguai) e Lula (o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva). Agora, caso se confirmem as mudanças, deve esmorecer mesmo. Setores mais radicais terão de repensar seu discurso. O chavismo, por exemplo, sai enfraquecido, deve diminuir a influência no Caribe - diz Cristina Pecequilo, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Um lugar em Cuba onde o regime é impenetrável

Dia seguinte ao anúncio foi de expectativa nas ruas de Havana

Em se tratando de países como a Venezuela, o momento político se soma ao econômico, com a queda vertiginosa do preço do petróleo. Era pelo petróleo, responsável por 95% das exportações venezuelanas, que o governo mantinha iniciativas sociais e ajudava Cuba a enfrentar sua crise econômica.

- Acho que esses setores mais radicais da esquerda estão com uma tremenda dor de cabeça. Sempre haverá aquele público que queima bandeira dos Estados Unidos em protestos. O antiamericanismo, de alguma forma, sempre vai existir. Mas a agressividade deve diminuir - completa Cristina Pecequilo.

Entre os países com esse perfil, a professora da Unifesp projeta a continuação apenas da Coreia do Norte, isolada. Outros terão de arrefecer as bravatas antiamericanas e os discursos raivosos. No chamado bolivarianismo, a própria Venezuela já vende ações da sua estatal petrolífera, a Bolívia é elogiada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Mercosul flerta com a menos ideológica e mais pragmática Aliança do Pacífico. De outro lado, os próprios EUA e a União Europeia se preocupam com Cuba e com toda a América Latina ao ver o crescimento da influência chinesa. No caso cubano, isso se amplifica pelo simbolismo e pelas perspectivas abertas a partir da construção do estratégico porto de Mariel, feita a partir do fomento público brasileiro.

Uma mudança sem perdedores

- Ainda vejo a aproximação entre Cuba e EUA como um evento mais de ordem prática e econômica do que ideológica. Trata-se de economia e trânsito de pessoas. Mas o fim do bloqueio econômico começou e é um caminho sem volta. Pelas palavras de Obama, houve um reconhecimento do erro americano em manter esse bloqueio, e Cuba está se abrindo. Claro que mais adiante isso pode ter outros efeitos - analisa o venezuelano Rafael Duarte Villa, professor de ciências políticas da Universidade de São Paulo (USP).

- Uns e outros vão dizer que foram vencedores. Mas o correto, em uma visão mais distanciadas, é dizer que todos venceram, por mais que uns e outros não aceitem - resume o sociólogo argentino Federico Freyre.

Em tom de brincadeira, mas sem deixar de falar sério, o escritor Fernando Morais, autor de livros como A Ilha e Os Últimos Soldados da Guerra Fria, deixa a sua frase de efeito.

- Agora, se alguém quiser mandar um cara de esquerda longe, ele não diz mais "vai pra Cuba, comunista". Ele diz "vai pra Washington, comunista" - afirma ele, um tradicional entusiasta da ilha socialista.

Este texto começou falando em espaço nos jornais e se encerra com o mesmo tema. Em Havana, o diário Granma, oficial, festejava o reatamento de relações. Nos EUA, o The New York Times criticava o embargo econômico sob a alegação de que ele "mantém a imagem de Cuba como vítima de uma política inutilmente dura dos EUA". A conclusão de quem acompanha o assunto é: o mundo não voltará a ser o mesmo.

Linha do tempo: a história de Cuba em 15 momentos

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