
* Pernambucano de Sertânia, viveu no Recife. Reside em São Paulo desde 1991.
É autor, entre outros, do romance Nossos Ossos, Editora Record.
"Welcome", disse um americano branco para Ariano à porta do céu. Meu Deus, Meu Jesus! Até aqui se fala inglês. E fez logo o sinal da cruz, pediu proteção, passagem. Desculpe-me, sabe, mas eu estou apressado. Quero encontrar João Ubaldo. E repetiu, pausado: João Ubaldo Ribeiro.
Como viu que não seria entendido, o americano começou a dar uns passos: andava para trás, com os pés colados. Voltava para frente, no mesmo ritmo. De dança, ora essa, Ariano entende. Não, meu amigo, isso não é dança de gente. Olhou, de repente, e soltou um sorriso, discreto. Não é que era o Michael Jackson?
Meu filho, andei falando de você, muito. Nas minhas aulas-espetáculo. Nada contra a sua figura. Nada contra o país dos Estados Unidos. Lá tem quem preste. Por exemplo, Melville, Hemingway, Faulkner. Romance policial que eu adoro, filme de faroeste. E foi abrindo caminho, de fininho, em seu cavalo do sonho. Sempre dizia, quixotesco, que todo escritor deveria montar nesse cavalo: usar a sela da imaginação.
Meu senhor, por acaso o senhor viu um homem chamado João Ubaldo? Ele chegou pouco antes de mim, tem coisa de uma semana. Eu preciso falar com ele, é meio urgente. Nunca pensei que tivesse tanta gente no céu. Olhou adiante: pastores, palhaços, loucos, bêbados, cangaceiros. Isto aqui está uma festa. E foi se animando. Gritou para Michael, lá distante. Olha, aqui tem ciranda, vem dançar ciranda. Besteira. Como ele vai compreender a minha língua brasileira?
O senhor falava espanhol. Ah, de espanhol eu sei. Minha grande paixão, Ariano falou: Miguel de Cervantes. E os olhos faiscaram. As pestanas foram ao alto. Quando ouviu, sem acreditar. "Soy Cervantes". Ali, à sua frente, o criador de Dom Quixote veio agradecer, emocionado. Por tudo o que Ariano, esse verdadeiro cavaleiro andante, fez pelo seu trabalho. Marcaram um passeio com o Rocinante, para mais tarde. Iremos até a Pedra do Reino. Lá esperam por você Euclides da Cunha, José Lins do Rego, Antonio Conselheiro.
E João Ubaldo? É que eu preciso falar com João Ubaldo Ribeiro. Para lá, para aquele lado. Apontou Cervantes. E Ariano seguiu. Parecia João Grilo atrás da Compadecida. O coração vivo, pulsando. A cada curva no céu, um novo encontro. Amigos antigos. E até alguns bichos de Taperoá. Cabras, pássaros, cachorros de Deus. Viu se aproximar caranguejos. E chorou, pela primeira vez, chorou.
Chico, menino. Saudades, menino. Desculpa aqui, de novo, mais uma vez esse seu velho teimoso. Já mudou de nome? Chico Ciência, pensa, meu rapaz, é mais bonito. Queridão, querido amigo. E ficaram de mãos dadas por um tempo. E Chico Science, quem diria, foi quem levou Ariano até a presença de João Ubaldo. Foram abraçados até o baiano. Obrigado, Chico, obrigado.
"Viva o povo brasileiro", exclamou Ariano à chegada. Ubaldo estava sentado, olhando em frente um horizonte igual ao da Ilha de Itaparica. João, João. Preciso falar com você. Falar mesmo o quê? Os dois, em silêncio. Dentro do silêncio, irmanados. Não houve melhor abraço. Um do lado do outro. Permaneceram tranquilos. Feito dois palhaços. Chegados a um novo circo. É isto. O céu é um circo. Um grande circo, meu caro.
Ariano sorriu. Estou vendo que caí outra vez na conversa de João Grilo. Olha só onde eu estava com a cabeça, Ubaldo. Ele me veio com aquela história da ressurreição. Disse que há chances de a gente voltar. Morremos há pouco. O espírito ainda não deu tempo de se acostumar. É só a gente querer. Falou para a gente procurar, juntos, por Nossa Senhora, a Compadecida. Ela há de entender. O Brasil precisa muito, e ainda, de nós dois. João Grilo foi dramático. O Brasil está para morrer. Por um triz, falido. Sem esperança, combalido. Corre, corre, vai atrás de João Ubaldo e avisa. Voltem, voltem logo. Ariano sorria. Punha as mãos na cabeça e sorria. Mentiroso de uma figa.
Como fui acreditar nisto? Riram e riram.
Na dúvida, toca a gaita, João Grilo.
Melhor tocar a gaita, João Grilo.