
* Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS
Perdemos um grande poeta. Perdemos um grande dramaturgo. Perdemos um grande romancista. E perdemos, acima de tudo, um grande professor da ternura e da simplicidade humana. Num mundo contemporâneo maculado pelo analfabetismo afetivo, as aulas-espetáculo do mestre Suassuna eram refúgios de conhecimento e de afeto que misturavam assuntos teóricos com fábulas da cultura brasileira. Nunca esquecerei a aula inaugural da UFRGS do ano de 1996. Entre intervalos de comicidade e lirismo, Suassuna encantou quase 2 mil alunos que estavam ali para voltar à condição mais atávica do ser humano: o momento de contar e de ouvir histórias. O Salão de Atos, convertido numa espécie de caverna, estava silenciado e pouco iluminado para que se ouvisse um Quixote sertanejo, enlouquecido por uma imaginação permeada por personagens de uma terra-fera que insiste em desafiar a felicidade humana.
Mas uma das lições aprendidas no interior do reino pedregoso de Suassuna é a capacidade de dizer sim à vida, apesar da aridez das mortes trágicas e da secura da alma rachada. O titular da cadeira 32 da ABL também deixou outro legado que nunca poderá ser esquecido: o profundo respeito à oralidade. Mesmo que estejamos inseridos numa cultura ocidental matizada pela violência do saber letrado, é preciso que não esqueçamos os sentidos míticos e mágicos, oriundos de um espírito poético enunciado nas vozes dos nossos escritores de palavras ao ar. Somos, desde sempre, uma espécie fabuladora.
Havia um paroxismo fascinante em Ariano. De um lado, um imaginário de crueza espinhenta alimentado por seres ameaçadores que se encontravam naufragados num mar de terra indomada; de outro, a irrevogável doçura de um professor que cativava multidões quando descrevia um reino onde pingos prateados brilhavam ao sol. A candura e a generosidade de Suassuna não tinham limites.
Lembro-me, profundamente emocionado, quando esse professor de ternura, valente cavaleiro contra a fragilidade dos laços humanos, telefonou para o meu celular. Eu havia publicado um texto em ZH em virtude dos seus 80 anos. Com uma amabilidade que não pode ser traduzida em palavras, ele revelou que meu singelo artigo era um dos poucos que o emocionara em sua vida. Neste nosso primeiro encontro, convidou-me para prefaciar o seu romance, denominado O Jumento Sedutor. Não bastando tamanha honraria, Suassuna pediu-me "autorização" para transformar-me em um dos personagens do referido romance. Começava ali uma amizade que seria tristemente interrompida na última quarta-feira.
No entanto, meu professor, que nunca abandonou suas aulas para milhares de pessoas nos mais variados lugares, deixou muitos ensinamentos. Talvez um dos maiores princípios que esse palhaço frustrado, fascinado pelo circo, tenha nos legado, seja justamente uma poética da singeleza. Seu destino era a subjetividade de uma alteridade que passava a ser afetada por intermédio afeto. Na contramão dos ególatras e dos medalhões, Ariano partilhava bondosamente o saber com o Outro. Todos nós, transformados em seus alunos, percebíamos um sopro de esperança: ainda é possível viver uma territorialidade absolutamente humana. Em inúmeras aulas não havia mediações pós-humanas através de simulacros virtuais, pois, naqueles minutos de celebração da sublime palavra-magma, o humano (contador de estórias) se encontrava com o humano (aluno, ouvinte, interlocutor).
Em um hotel na cidade de Canoas, no ano passado, tivemos nosso último almoço. Conversamos demoradamente sobre futebol, literatura, viagem, cinema. Tristemente parecia existir um tom de despedida naquele encontro. Meu mestre parecia já fragilizado. Ao nos despedirmos, o imperador da pedra do reino pediu para seu genro, o grande artista Alexandre Nóbrega, que buscasse um exemplar do seu belíssimo livro de fotografias, O Decifrador, no qual existe um impactante registro das incansáveis viagens de Suassuna. Como último ato, essa é a última imagem que guardo dele: o momento em que pegou uma caneta para escrever uma dedicatória na qual me definia como mistura de irmão mais novo e filho adotivo. Depois disso, nos abraçamos, e Ariano se foi, a fim de descansar para a sua missão mais digna e nobre: proferir mais uma aula.
Duas paixões literárias de Suassuna eram recorrentes em nossas conversas: a obra de Miguel Unamuno e o poema Infância, de Paulo Mendes Campos. É com esses dois escritores que gostaria de terminar meu texto de agradecimento e despedida. Em determinada passagem, o pensador basco afirma que os homens vivem juntos, porém cada um morre sozinho, e a morte é a suprema solidão. A morte de Suassuna não é uma morte solitária. Há uma legião de alunos e leitores que estão com o seu mestre agora, pois carregaremos em nossas memórias, para além das obras literárias, a sua voz e o seu olhar sobre o mundo. Estaremos, sim, com seus livros em nossas casas, mas, acima de tudo, lembraremos também de uma pedagogia da partilha dos sonhos humanos. E quando um grupo de pessoas se reunir para ouvir uma estória, através do colorido da cultura popular, certamente o mestre estará ali presente, quem sabe ao lado de João Grilo e Chicó, quem sabe ao lado de Dom Pedro Diniz Quaderna, quem sabe ao lado de Nossa Senhora Compadecida. Já o poema adorado por Ariano nos traz uma mensagem importante sobre a morte, pois, como elucida Umberto Eco, uma das funções da literatura é nos ensinar a morrer. Segundo o poeta mineiro, no poema Infância, a morte é antes "feroz lembrança do que aconteceu" e "nada mais", mas "o resto é esperança".
Tratemos então de rememorar intensamente o legado feérico de Ariano Suassuna. E sigamos esperançosos de que a sua trupe e o seu sorriso tenham nos tornado mais humanos. Espero, com todas as minhas forças, que nesse momento ele esteja encontrando seus companheiros que o escoltaram ao longo da sua vida: Cervantes, Plauto, os figurantes da commedia dellarte e os personagens do Cordel, entre outros.
Só me resta dizer: Obrigado, professor.