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O artista pernambucano Francisco Brennand fez de um antigo engenho e fábrica de cerâmica o centro de seu próprio universo. Nele, convivem em harmonia diferentes mitologias e religiões, o sagrado e o profano, o trágico e o erótico, como uma síntese das culturas que acompanham o andar da civilização.
Do lado de dentro do grande ateliê circundado por muralhas na várzea do Rio Capibaribe, a cerca de 30 quilômetros do centro de Recife, o artista vem criando há mais de 40 anos um monumental museu a céu aberto que atrai visitantes de todo o mundo interessados pelo sincretismo peculiar com que dá forma a curiosas esculturas em cerâmica. São figuras que impressionam pelo caráter fantástico – mistura de seres mitológicos e personagens históricos, híbridos de animais e frutos. Um vocabulário plástico marcado pela mistura de muitos tempos e lugares.
– Pode utilizar a palavra arcaico – autoriza o artista, em entrevista por telefone desde seu ateliê-museu em Pernambuco.
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Brennand é agora tema de uma grande exposição em Porto Alegre, que tem inauguração nesta terça-feira (7/6) e abertura para o público a partir de quarta-feira (8/6). Senhor da várzea, da argila e do fogo é o ponto alto da programação que comemora os 15 anos de atividades do Santander Cultural em Porto Alegre.
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Celebrado como um dos últimos representantes da geração que fez história com a arte moderna brasileira no século 20, Brennand tinha sua vinda ao Estado cercada por expectativa. Mas, às vésperas de completar 89 anos (no próximo sábado), conta que não será possível estar na abertura da exposição.
– Com essa idade, não viajo mais, o que lastimo imensamente – afirma. – O Sul me fascina. Meu pai falava muito do convívio com Flores da Cunha e Osvaldo Aranha. E admirava a maneira como vocês falam o português pronunciando todos os erres e esses.
Descendente de uma família tradicional nordestina, Francisco nasceu filho de Ricardo de Almeida Brennand, dono de uma fábrica de cerâmica nas terras de um antigo engenho. Foi nas ruínas desse lugar cheio de história que o artista começou a erguer, em 1971, a Oficina Cerâmica e o Parque das Esculturas Francisco Brennand.
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Senhor da várzea, da argila e do fogo busca transpor para o ambiente do Santander Cultural a atmosfera desse lugar. No térreo, esculturas, pinturas e murais, alguns de grande porte, são apresentados junto a filmes sobre o artista e painéis com fotografias em grande formato que reproduzem o espaço em que vive e produz. Curador da mostra, o artista e museólogo Emanoel Araujo vê os 14 mil metros quadrados de jardins, pátios e lagos mantidos por Brennand como uma grande instalação a céu aberto, um lugar onde suas obras parecem ter sido feitas especialmente para ali serem mostradas:
– A produção do Brennand é muito complexa. E isso aparece na exposição com a tentativa de contextualizarmos a grande instalação que ele criou ao longo de muitos anos. Portanto, é um desafio, pois é preciso que o espectador possa fluir e entender os conflitos dessa coabitação temporária de esculturas, pinturas e grandes painéis que retratam a sua suntuosa instalação.
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Entrevista: "Perdi muito tempo até virar escultor", diz Francisco Brennand
Francisco Brennand começou a carreira pintando. Foi depois de ir à França, nos anos 1940, e ver obras de Picasso que o artista pernambucano resolveu se dedicar à escultura em cerâmica pela qual hoje é reconhecido mundialmente. Nesta entrevista concedida por telefone, Brennand fala ainda da escolha de seus temas e do momento em que decidiu criar seu ateliê-museu em Recife.
Na arte moderna brasileira, não foram muitos os artistas de sua geração que trabalharam com escultura em cerâmica. O que levou o senhor a privilegiar essa linguagem?
Aconteceu uma coisa curiosa. Eu tinha, como a maior parte dos artistas de minha geração, uma espécie de preconceito em relação às chamadas artes decorativas, em que estava incluída a cerâmica. Até viajar para Paris, com 22 anos, em 1949, não abordei a cerâmica. No entanto, nasci dentro de um universo cerâmico. Meu pai era um empresário do ramo, tinha fábrica de telhas, tijolos, porcelana, azulejos... E eu relutava, achava que era arte menor. Só trabalhava com pintura a óleo sobre tela.
E o que aconteceu em Paris?
Chegando então a Paris, quase que como um castigo (o pintor) Cicero Dias me levou a uma exposição de Picasso. Eu supunha ser de pinturas, mas era de cerâmicas! Picasso tinha trabalhado logo depois da II Guerra no sul da França com cerâmica e apresentava 300 peças maravilhosas, o que foi, para mim, ao mesmo tempo, uma descoberta e uma humilhação. Por ter tido noção perfeita da perda total do tempo, o tempo perdido, que teria de ser recuperado de qualquer forma. Logo adiante, vieram as descobertas de Joan Miró, Fernand Léger... Todos os pintores da Escola de Paris, inclusive Gauguin, o mestre dos mestres, haviam trabalhado com cerâmica. Nenhum deles falhou, e eu, no entanto, um jovem pintor nordestino, absolutamente desconhecido, tendo tudo para fazer bem a cerâmica, relutei em fazer e, na realidade, perdi muito tempo. Mas retornando levei a sério.
E quando isso começou?
De fato, foi a partir de 1971. Portanto, nesses 45 anos, não fiz outra coisa senão povoar essa velha fábrica que foi sendo, ao lado da criação das peças (as esculturas), lentamente reconstruída até ficar o que é hoje. Antes de fazer cerâmica, eu pintei. E continuo a pintar. A própria cerâmica, depois de esculpida, eu utilizo a pintura sobre ela. Não faço uma escultura em cerâmica sem utilizar cores.
Suas esculturas são muitos ligadas a esse lugar onde são criadas e instaladas. Como foi começar a levá-las para exposições pelo mundo?
Chegava ao ponto de eu pensar que essas peças só tinham significado para mim aqui, no local para onde elas foram feitas, e não lá fora, como se elas perdessem a sua sacralidade. Mas os críticos de arte me fizeram ver de imediato que isso era uma bobagem. Elas (as obras) valiam por si próprias e deveriam ser expostas. Então, entrei nessa grande aventura que são as exposições, inclusive no estrangeiro. Expus na Bienal de Veneza, em Berlim...
Como o senhor chegou à síntese de tantas culturas em sua obra?
Não sou indianista, helenista ou mitólogo. Escolho uma mitologia de modo pessoal e trabalho com ela sem cerimônia. Abordo mitologia grega, latina, sumeriana, personagens bíblicos, da história... Catados aqui e acolá. Pode ser Maria Antonieta, Joana d'Arc, Luís 16, Marat, Robespierre... Quer dizer, há uma enorme variedade de coisas que abordo a depender de leituras e aspectos circunstanciais que tomo para mim.
Sua obra traz uma mistura de muitos tempos e lugares, ressoando algo ancestral e primitivo. O senhor vê o seu trabalho dessa maneira?
Pode utilizar sem medo a palavra arcaica. Desde o momento em que você se compromete com os quatro elementos – o fogo, a terra, a água e o ar –, você não tem como fugir desses elementos primitivos, primordiais, independentemente da linguagem ou vontade. Esse arcaísmo não é voluntário. Não é que eu queira voltar a ser um índio ou um homem das cavernas. Não é nada disso. É porque é a linguagem própria da cerâmica. Isso aconteceu com grandes mestres como Picasso e Miró. A cerâmica de Miró, inclusive, surpreendia a mim como matéria, pois era como se ele cortasse pedras na natureza e pintasse sobre elas. Acho que consegui uma matéria mais ou menos semelhante.
SENHOR DA VÁRZEA, DA ARGILA E DO FOGO
Inauguração terça-feira (7/6), às 19h, para convidados.
Visitação a partir de quarta-feira (8/6), de terça a sábado, das 10h às 19h, e domingo, das 13h às 19h. Fechado nos feriados. Até 4 de setembro. Entrada gratuita.
Santander Cultural (Sete de Setembro, 1.028, na Praça da Alfândega), em Porto Alegre, fone (51) 3287-5500.
A exposição: apresenta uma seleção de mais de 80 obras de Francisco Brennand, com destaque para a produção de esculturas e murais em cerâmica pela qual é reconhecido internacionalmente.