Foram as águas do Rio Jacuí que trouxeram à tona um dos crimes da ditadura de 1964 mais comentados pela imprensa local e nacional. Foi ali que o corpo do sargento Manoel Raymundo Soares foi encontrado, em 24 de agosto de 1966, com as mãos atadas e marcas de tortura. O episódio ficou conhecido como o "caso das mãos amarradas" e causou grande comoção popular – a censura aos jornais ainda não havia sido instituída. Como em outros casos da época, ninguém foi punido pelo crime.
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O episódio, que completa 50 anos este mês, é o tema do mais novo trabalho do jornalista Rafael Guimaraens, premiado autor de livros-reportagens. O sargento, o marechal e o faquir transforma em romance a vida de Raymundo Soares, bem como as investigações sobre seu assassinato. O volume será lançado nesta quinta-feira, com um bate-papo do autor com Carlos Frederico Guazzelli (da Comissão Estadual da Verdade) e Suzana Lisbôa (da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos). O encontro será na Fundação Ecarta (João Pessoa, 943), às 19h.
– A ideia de escrever um livro com linguagem de romance foi um modo de fazer mais gente se interessar para ler, não apenas aquelas que já se interessam por livros sobre a ditadura e direitos humanos – conta Guimaraens.
Apesar de ser narrado de modo leve e envolvente, O sargento, o marechal e o faquir não usa histórias ou detalhes ficcionais para condimentar a narrativa. Tudo é produto de rigorosa pesquisa jornalística – há mais de 10 anos Guimaraens estuda o caso. Mas há personagens que poderiam estar até em livros de ficção. Além de Soares, que nasceu pobre no Pará e mudou-se para o Rio, onde seguiu carreira militar e se transformou em um aficionado por música erudita, há outras personalidades que atraem a atenção do leitor.
O marechal do título faz referência ao então presidente Castelo Branco (1900 – 1967), mas quem rouba a cena é Edu Rodrigues, também conhecido como o faquir Príncipe Aladim, que, depois de uma malfadada carreira fazendo jejum em camas de prego cercadas por serpentes, torna-se informante dos militares. É essa figura extravagante e insólita que delata Soares – o paraense já havia sido expulso do Exército, por não apoiar o golpe de 1964, e estava oculto em Porto Alegre para fazer contatos e estabelecer resistência ao regime militar.
O autor espera que o livro contribua para preservar a memória sobre o ditadura militar, principalmente para as novas gerações:
– Sem informação, os jovens podem idealizar o passado, achar que foi até mesmo bom. A anistia tenta estabelecer um pacto com base no esquecimento. Isso é uma coisa que não funciona em lugar algum. O esquecimento deixa feridas que estão até hoje abertas. As famílias não conseguem saber o que aconteceu com seus parentes, os torturadores andam soltos, e o país segue dividido.
Zero Hora acompanhou os desdobramentos do caso na época. Confira:
ENTENDA O CASO
- Um corpo foi encontrado com as mãos amarradas e marcas de tortura no Rio Jacuí, nas imediações da Ilha das Flores, em 24 de agosto de 1966. O fato chocou a população e a imprensa, ficando conhecido como “o caso das mãos amarradas”.
- Poucos dias depois, a identidade do morto foi descoberta. Era o ex-sargento paraense Manoel Raymundo Soares, expulso do Exército em julho de 1964, pois oferecia resistência ao golpe militar.
- Soares havia sido preso em 11 de março de 1966, sendo exposto a várias sessões de tortura. O ex-sargento visitava Porto Alegre para encontrar lideranças da resistência ao regime militar.
- Uma CPI foi criada para investigar o caso, mas ninguém foi punido pelo crime. Em 2005, uma ação movida pela viúva de Soares foi julgada, responsabilizando a União pela morte.