
Iberê Camargo não tinha nem 18 anos quando desistiu da carreira de artista. O desentendimento com um professor o levou a sair da Escola de Artes e Ofícios de Santa Maria. Ao abandonar os estudos, passou então a procurar emprego na cidade ferroviária e, em uma tarde dessas, foi surpreendido por um andarilho que se aproximou, pegou em suas mãos e bradou: "Tu és um grande artista, o mundo inteiro falará de ti!". É o próprio Iberê quem conta essa história, em texto autobiográfico de 1985.
Como se sabe, o gaúcho de Restinga Seca mudou de ideia e retomou a vocação, tendo uma vida artística de intensa entrega e dedicação. Morreu em 1994, aos 79 anos, reconhecido como um dos maiores pintores brasileiros. Mas sem ser descoberto pelo olhar estrangeiro, até então mais interessado no colorido tropical da brasilidade modernista do que no expressionismo melancólico e trágico que marca a obra de Iberê.
No ano do centenário de nascimento do artista, a Fundação Iberê Camargo (FIC) dá início ao plano de exportação da sua obra, com o objetivo de promover sua internacionalização. Em São Paulo, no último sábado, a abertura de uma retrospectiva no Centro Cultural Banco do Brasil marcou a largada da programação. Diversas atividades e exposições se estendem até 2015 no país e no Exterior.
Em maio do ano que vem, a FIC apresentará três mostras na Itália, país onde Iberê viveu no fim dos anos 1940 e estudou com mestres como Giorgio de Chirico (1888 - 1978). Florença receberá duas, e Bolonha, a terceira. A investida no velho mundo ocorre 10 anos depois da estreia na Europa, quando a FIC levou uma mostra de Iberê ao Museu de Belas Artes de Bordeaux, na França. E, para depois do centenário, já estão em curso negociações de exposições do artista na Alemanha (Berlim e Hamburgo) e em Portugal (Lisboa). Tudo é consequência do projeto da FIC desde sua criação, em 1995, ao buscar conexões na cena internacional.
- É uma construção que vem dos últimos 20 anos. A Fundação sempre buscou coisas complexas e complicadas. E hoje podemos dizer que não há outro artista do Brasil que tenha tido a felicidade e o privilégio de ter um lugar tão especial para sua obra, em condições de divulgá-la em toda a sua grandeza - diz o superintendente cultural da FIC, Fábio Coutinho.
Com a inauguração, em 2008, da premiada sede desenhada pelo arquiteto português Álvaro Siza, a instituição demarcou Porto Alegre na geografia global dos grandes museus. O prédio passou a abrigar exposições de Iberê e outros artistas assinadas por curadores do Brasil e de fora do país, incluindo nomes de trânsito no circuito internacional, como o venezuelano Luis Pérez-Oramas, o colombiano José Roca e o espanhol Gabriel Pérez-Barreiro. Também trouxe à Capital, muitas vezes com exclusividade no Brasil, mostras em parceria com instituições estrangeiras como MoMA de NY, Reina Sofía de Madri, Museo Morandi de Bolonha, Fondazione De Chirico de Roma e Blanton Museum of Art do Texas. Agora, a FIC começa a trilhar um caminho de mão dupla, buscando levar suas exposições para o Exterior. Iberê, já reconhecido e admirado no Brasil, terá sua inserção internacional colocada à prova.
- A Fundação tem apresentado a obra de Iberê para curadores e instituições importantes. À medida que o trabalho fica conhecido, é inevitável que a qualidade da obra atraia atenção, pois sempre há gente interessada em arte de qualidade. Iberê só não é mais conhecido por ser brasileiro e porque estávamos muito isolados. Mas isso vem sendo rompido - diz Agnaldo Farias, professor da USP, crítico, curador e integrante do Comitê Curatorial da FIC.
"Iberê tem peso internacional"
O italiano Alberto Salvadori é diretor artístico do Museu Marino Marini, de Florença. Como responsável pelas três exposições que serão apresentadas na Itália em maio de 2015, ele está envolvido com a pesquisa (e a descoberta) da obra de Iberê Camargo.
O que o senhor conhecia a respeito de Iberê Camargo?
Alberto Salvadori - Sobretudo, seu importante lugar na história da arte brasileira. A produção de Iberê é caracterizada por diversos momentos, cada um deles com força expressiva. É possível ler sua obra também de modo mais introspectivo, quase de caráter psicológico. Estudando-o, emergem um peso e uma dimensão internacional de sua obra, que exposições como essas ajudarão a revelar para o público europeu.
Em sua opinião, no que reside a força da obra do artista?
Salvadori - Além da qualidade da sua pintura, que permite que o trabalho jamais envelheça, como acontece com a grande arte, sua força é mostrar como foi autônomo e independente por toda a vida. E também como seguiu a todo o custo a sua sensibilidade, mantendo autonomia formal e intelectual.
O que falta para Iberê ser mais conhecido fora do Brasil?
Salvadori - Iberê é um importante artista do século 20. O trabalho da Fundação está gerando maiores frutos no que tange ao reconhecimento nacional e internacional. Fora do Brasil, como fora de muitos outros países, há muito o que trabalhar para se fazer conhecer a cultura artística local.
O CENTENÁRIO
Os cem anos de nascimento de Iberê Camargo são comemorados com extensa programação. Confira alguns destaques:
EXPOSIÇÕES
Itália
> Serão apresentadas três mostras de Iberê em maio de 2015. O Museo Marino Marini, em Florença, dará foco às gravuras. O Palazzo Pitti, também em Florença, mostrará recorte voltado à produção do artista nos anos 1960. Já o Museo Morandi, em Bolonha, destacará as relações entre as obras de Iberê e do mestre Giorgio Morandi (1890 - 1964), apresentando naturezas-mortas de ambos.
São Paulo
> O Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) inaugurou no último sábado a retrospectiva Um Trágico nos Trópicos, que segue até 7 de julho. Em agosto, a Pinacoteca do Estado de SP terá mostra dedicada às gravuras.Rio de Janeiro
> O Museu de Arte Moderna (MAM) apresentará uma retrospectiva do artista em outubro de 2015.
Porto Alegre
> Na Fundação Iberê Camargo, está em cartaz até 9 de novembro a mostra As Horas [O Tempo como Motivo]. No dia 18 de novembro, será inaugurada a exposição oficial do centenário, uma grande coletiva que ocupará todo o prédio com obras de Iberê e artistas contemporâneos, além de filmes e recursos multimídia.
Interior do RS
> A mostra itinerante Iberê Camargo - Um Homem a Caminho passa por Bagé (a partir de hoje, na Da Maya Espaço Cultural) e Lajeado (17 de julho, no Sesc).
E AINDA
Livro - Com organização do crítico Luiz Camillo Osorio e lançamento em novembro pela Cosac Naify, apresentará uma biografia pessoal e artística de Iberê, além de textos críticos, sendo voltada a leitores interessados em conhecer a trajetória e a dimensão do artista.
Filmes - A diretora Marta Biavaschi prepara para novembro um ensaio visual e biográfico sobre Iberê, com narrações do artista e imagens de arquivo. Já o diretor Joel Pizzini está produzindo um filme para a grande exposição do centenário em novembro, na Capital.
Digitalização - Até o fim do ano, o acervo da Fundação Iberê Camargo estará disponível na internet, reunindo mais de 5 mil obras e documentos.
*O jornalista viajou a convite da Fundação Iberê Camargo