
A história dos três pianos afogados contada por Juarez Fonseca no Segundo Caderno de 27 de maio é assustadora. Pianos não deveriam morrer, muito menos pela ação do seu inimigo natural. Pianos são feitos de feltro, madeira, aço, materiais que a água corrói, deforma e dilui. Música se faz com pianos. Afogam-se pianos, morre a música. Fosse na universidade pública, tão vilipendiada, e um caso desses já despertaria clamores de sucateamento, improbidade, irresponsabilidade, descaso. Mas, como não é, fica-se sem saber se foi acidente evitável, incidente fortuito, descuido ou tenebrosa falta de ação.
O episódio do dique rompido, até hoje não muito bem explicado, e que está na origem do afogamento dos pianos, deixou famílias desabrigadas, arrasou casas, desmontou vidas. Para um observador ingenuamente politicamente correto, ocorreria perguntar o que são três pianos destruídos perto de pessoas em estado de desamparo. Mas está aí o tipo de comparação vazia que costuma enganar os incautos, inflamar as discussões e, enfim, esvaziar o debate. São coisas distintas, dramas humanos e tragédias musicais. Mas merecem o mesmo tipo de lamento, a mesma revolta diante do que se poderia evitar e que agora se tornou irreparável.
Parece que virá um novo piano. Só que um não substitui três que, de tão bem guardados a sete chaves (sem trocadilhos!), acabaram por virar sucata. Pois bem: quando esse um novo piano for inaugurado, espero que ninguém tenha o mau gosto de colocar Debussy no programa, tropeçando na gafe de tocar A Catedral Submersa, Reflexos nágua, Jardins sob a Chuva ou Peixinhos Dourados.
Ravel também seria bom evitar, deixando de lado Fontes dágua e Um Barco sobre o Oceano. Que nem se pense em Liszt: não precisamos ouvir São Francisco de Paula Caminhando sobre as Ondas. E que Villa-Lobos fique à distância com A Maré Encheu e Fui no Tororó. Sim, parece cômico. Por certo: como bons brasileiros, estamos sempre fazendo piada mesmo das tragédias mais agudas.