"Sairá ao público no ano que vem se a vida não me falta", escreveu José Saramago sobre Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas em 2009, no seu caderno de anotações. Abatido pela leucemia e com problemas respiratórios, o escritor português não teve tempo de completar a trama, morrendo em 2010. No entanto, o livro, ou melhor, parte dele é agora revelada ao público.
Os três capítulos que Saramago conseguiu escrever foram recém-lançados no mercado brasileiro e já têm edições em Portugal, Itália e Espanha. Sendo um texto inédito de vencedor do Nobel, Alabardas... também já despertou a cobiça de editores de outras partes do mundo - estão sendo negociadas traduções em francês, catalão, alemão e inglês. Difícil é saber se o autor ficaria contente com a publicação do livro incompleto.
- Saramago não deixou instruções para o que fazer com o texto caso morresse, mas não faria sentido privar seus leitores de seu último livro, que ainda por cima tem uma temática tão importante como a violência - conta Sérgio Letria, coordenador da Fundação José Saramago, sediada em Lisboa e dedicada a perpetuar a obra do escritor.
Confira trecho de Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas
Personalidades comentam o legado de José Saramago
José Saramago: a eternidade antes da morte
A história trata de Artur Paz Semedo, homem que, apesar de levar a paz no nome, é funcionário de uma fábrica de armas. Semedo inicia a trama em um momento de questionamento depois de ter sido abandonado pela mulher, uma pacifista radical. Com pouco mais de 50 páginas, o texto não vai muito além de apresentar os personagens principais, mas tem impressionado leitores por sua força, comparável às narrativas anteriores.
- É o último suspiro do autor, mas é muito forte, capaz de interessar o grande público, e muito valioso para os leitores que já acompanhavam o autor - diz Julia Bussius, da Companhia das Letras, editora responsável pela edição brasileira.
Os longos parágrafos, bem como a falta de travessões ou aspas para iniciar e fechar diálogos, marcas de romances anteriores, estão presentes - a família do escritor diz que os capítulos estavam prontos e revisados pelo autor, sendo lançados praticamente sem edição. Maiquel Röhrig, professor que dedicou mestrado e doutorado pela UFRGS ao estudo de Saramago, afirma não ter se decepcionado com a obra:
- O que está escrito tem exatamente a voz autoral do Saramago. A publicação não soa como uma traição dos herdeiros, e sim como uma homenagem.
O livro vem acompanhado de três posfácios. O espanhol Fernando Gómez Aguilera, que já escreveu uma biografia de Saramago, foi escolhido para compor um dos textos pela proximidade com o escritor, tendo acompanhado o processo de criação de Alabardas... Já o antropólogo brasileiro Luiz Eduardo Soares (Meu Casaco de General) e o jornalista italiano Roberto Saviano (Gomorra, Zero Zero Zero) estão no livro por desenvolverem trabalhos a respeito da violência, tema central do livro.
- É uma obra importante porque dá continuidade às ideias de Saramago, fazendo ressoar sua mensagem contra a injustiça social e outras injustiças - avalia Röhrig.
Quatro outros livros lançados sem o ponto final do autor
Cidade, de Nelson Rodrigues
O primeiro capítulo de Cidade foi publicado no jornal O Globo, em 1937, como parte de um romance que logo seria publicado. Nelson Rodrigues (1912 - 1980), no entanto, não deu continuidade à história, que se inicia com a visita de um homem à sua irmã em um bordel. A convite da editora Nova Fronteira, os escritores André SantAnna, Carlito Azevedo, Aldir Blanc e Veronica Stigger concluíram a trama.
Sanditon, de Jane Auten
Assim como Saramago, Jane Austen (1775 - 1817) também não conseguiu finalizar uma obra iniciada pouco antes sua morte. Sanditon, que aborda temas como saúde e hipocondria, foi publicado por distintas editoras com diferentes finais, do mesmo modo que Os Watsons, romance abandonado por Jane ainda na juventude. Persuasão e A Abadia de Northanger, embora completos, também foram publicações póstumas.
O Processo, de Franz Kafka
Grande parte das obras de Kafka foram publicadas sem conclusão - e contra a vontade do autor. O escritor teria confiado uma pilha de originais e obras inacabadas ao amigo Max Brod e lhe pedido que tudo fosse queimado após sua morte. Em vez de cumprir o desejo do autor, Brod passou a organizar e lançar os textos. Se não fosse a traição do amigo, a literatura perderia clássicos como O Processo e O Castelo.
Solo de Clarineta, de Erico Verissimo
O segundo volume de Solo de Clarineta, livro de memórias do autor, estava sendo escrito quando Erico Verissimo morreu, em 1975. Planejador meticuloso, o autor de O Tempo e o Vento deixou o esboço da estrutura da obra e capítulos em estágio bem avançado. Convidado pela família, o crítico Flávio Loureiro Chaves, especialista no estudo de Verissimo, organizou o livro, lançado em 1976.
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