
Carlos Nader é dono de uma façanha sem precedentes no cinema documental brasileiro: venceu por três vezes a mostra nacional do É Tudo Verdade, mais importante festival de documentários da América Latina: a primeira em 2008 com Pan-cinema Permanente, ensaio biográfico do poeta Waly Salomão, e a mais recente agora em 2015, com A Paixão de JL, no qual trabalhou sobre os diários gravados em fitas cassete pelo artista plástico José Leonilson. Entre estes dois projetos, o diretor paulista foi premiado com Homem Comum, filme estreia em Porto Alegre nesta quinta-feira, no Espaço Itaú.
O personagem de Nader em Homem Comum é Nilson de Paula, caminhoneiro paranaense que ele encontrou em um posto de gasolina em 1995, quando produzia um documentário pautado por questionamentos existenciais a motoristas viajantes, figuras marcadas pela solidão na estrada, distância da família e perspectiva do futuro. Ao falar sobre qual era para ele o sentido da vida, Nilson acabou se tornando o único protagonista de um projeto que se mostraria maior e mais ambicioso.
Nader se aproximou do caminhoneiro, da mulher dele e da filha pequena. Ao longo de quase 20 anos, até 2012, registrou a família em diferentes momentos, incluindo a dor de um luto, as fissuras de um rompimento, a debilidade decorrente de uma doença e as cicatrizes que ardem em um doloroso processo de reconciliação.
Esse registro da intimidade doméstica é embaralhado com cenas do filme A Palavra (Ordet,1955), do dinamarquês Carl Theodor Dreyer, clássico do cinema que apresenta uma família diante de questões como a morte, a fé e o milagre da ressurreição. Em meio ao espelhamento entre a vida de Nilson e trechos de A Palavra, Nader se mostra presente no processo de realização também embaralhando o que é real e espontâneo com movimentos e reações resultantes de suas provocações narrativas e estéticas.
A relação de Nader com seus personagens é passível de questionamentos éticos. Mas a beleza de muitos flagrantes captados pelo diretor, sobretudo aqueles que colocam em perspectiva comparativa o passado solar daquela família com seu presente nebuloso, compensam o possível desconforto que as, digamos, intervenções sobre Nilson possam causar no espectador.
Em entrevista a Zero Hora, Carlos Nader, nome egresso da videoarte e autor também de Eduardo Coutinho, 7 de Outubro (2013), no qual entrevista o grande mestre do documentário brasileiro, fala sobre o processo de realização do Homem Comum. Ele também explica as alterações que fez na montagem do filme - que trazia na versão exibida em festivais uma dramatização de A Palavra com atores, filmada na Inglaterra - e os dilemas éticos que encarou na convivência com Nilson e seus familiares.
A versão de Homem Comum que chega aos cinemas é diferente daquela exibida em festivais. Por que razão você fez as alterações, em especial no segmento que dramatizava o filme A Palavra?
A única mudança foi tirar do filme quase todo o trecho filmado na Inglaterra, aquele em que eu transformava Ordet num novelão, na linha Downton Abbey. Várias razoes contribuíram para isso. A principal delas é que esse remake nunca fez parte do projeto original. Só o filmei depois de uma negativa "definitiva" dos dinamarqueses de vender os quase 25 minutos do Ordet original, com começo, meio e fim, que estão inclusos no Homem Comum. Na Dinamarca, Ordet é um filme sagrado de um cineasta igualmente sagrado. E não é só lá. É considerado um dos 50 maiores filmes de todos os tempos pela lista do BFI. Eles resistiram muito a me vender os trechos, para serem incluídos num documentário sobre um caminhoneiro desconhecido. Coloquei "definitiva" entre aspas porque, depois de muita insistência, eles voltaram atrás. Eu gosto muito do corte que tem essas duas versões do Ordet, mas eu queria também, muito, ver um corte do filme exatamente como eu o tinha imaginado durante tantos anos. Pensei muito, e achei que nada me impedia de fazer isso. É muito comum que as peças de teatro mudem de uma montagem para outra e, às vezes, até de uma semana para outra. Com os shows de música acontece a mesma coisa. Os livros, também, vários têm adaptações de uma edição para outra. As exposições de arte também mudam, muitas vezes, quando mudam de cidade. Com os filmes isso tende a acontecer menos, historicamente, mas eu acho que essa é uma tradição decorrente de uma dificuldade técnica que existia antigamente. Mudar custava caro na época do celuloide. Hoje em dia, com o digital, ficou mais fácil. Então, mandei ver. As duas versões existem, convivem. Na internet, por exemplo, há as duas. E no DVD, minha ideia é manter as duas também. Isso se dá, pelo menos dentro da minha cabeça, numa linha coerente com o próprio filme, que é a de criar analogias. Ah, e o Ordet novelão também vai virar um curta autônomo.
A morte da mãe da família, que provocou o seu reencontro com o Nilson, e a presença da filha pequena foram determinantes para que você espelhasse seu filme no clássico de Dreyer?
A morte da mãe, de certo modo, sim. O filme, que tinha sido encerrado como um curta metragem em 1996, teve uma espécie de ressurreição quando o Nilson me telefonou à beira do leito de morte da esposa, pedindo que eu viajasse até Ponta Grossa para filmar o enterro dela. O que ele expressava ali, naquele momento de desespero, de morte, era o desejo oposto de imortalizar a esposa que ele amava tanto. Ele via o filme como gerador de vida. Na verdade, eu poderia criar toda uma teoria para justificar a inclusão do filme do Dreyer. Na verdade, já inventei. Mas isso se dá sempre a posteriori, quando eu olho para o filme - já tornado uma obra de arte autônoma - como mais um espectador. Aí eu penso, reflito sobre ele, analiso, critico. Mas no momento da criação, tudo se dá uma maneira bem mais orgânica, menos planejada. Nesse momento, o que realmente foi determinante para essa inclusão foi um desejo fortíssimo que eu tive de criar uma ressureição que fosse vivida pelo espectador no meu "documentário", como real. Não quero dar muitos detalhes para não gerar o que as pessoas chamam de spoiler, mas a minha vontade foi exatamente essa. O resto foi se encaixando. Uma coisa importante: quando coloco "documentário" entre aspas é porque o filme foi registrado na Ancine, a meu pedido, como ficção.
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Embora seu diálogo com A Palavra busque um paralelo no campo metafísico e religioso, os quase 20 anos de convivência com Nilson mostram ele sendo tomado por aquela aflição existencial, digamos, mais prática e terrena, decorrente do passar do tempo, que diz respeito ao que fizemos de nossa existência, ao legado que deixaremos - ele preocupava-se em não ver a filha crescer. O senhor acredita que o Nilson tenha alcançado o simbolismo das questões presentes em A Palavra?
Acho que sim, ele entendeu o filme à maneira dele. Mas, para mim, mais importante do que ele ter alcançado ou não as questões contidas em A Palavra, foi o quanto a postura de vida dele me ensinou na minha própria vida. Encontrei, na primeira vez, num momento em que eu estava paralisado por questões metafísicas ligadas à morte e que geravam um grande medo da vida. A convivência com ele, através do filme e depois através de uma amizade, me ajudaram a vencer essa paralisia.
Uma questão sempre presente nos documentários diz respeito ao grau de interferência do realizador sobre aquela realidade que capta. A cena que abre o filme, por exemplo, tem uma interferência sua na conversa entre o Nilson e a filha. E em diferentes ocasiões o Nilson fala da presença da câmera, parece compreender a importância do registro para "congelar o tempo". Compreendo que seu filme tem a proposta de um ensaio poético audiovisual, sem o rigor e as amarras do documentário clássico. Mas como se deu, nesse sentido da espontaneidade dos personagens, seu trabalho de direção, entre a naturalidade das reações deles e sua provocação de reações que melhor se ajustassem ao filme?
Não existe filme sem atuação. Nenhum. Todo mundo atua, mesmo nos chamados "documentários clássicos". Um entrevistado do Jornal Nacional atua. Na frente da câmera, ele é diferente de si mesmo quando está num bar, na cama, no chuveiro. Acontece que, também, quando ele está num bar, ele é diferente de quando está no chuveiro. Não é preciso uma câmera para que atuemos. A ideia de espontaneidade é sempre relativa às suas circunstâncias. Não existe uma pessoa real, no sentido absoluto. A gente precisa sempre lembrar que a própria palavra "pessoa", ""persona", quer dizer "máscara", em latim.
Em sua longa convivência com o Nilson e seus familiares, você se viu diante de algum dilema ético que o fez abrir mão do registro de determinada situação ou contorná-la de forma diferente?
Sim, vários. Há várias coisas que eles pediram para eu não mostrar ou contar e eu não mostrei ou contei. Não posso, pela mesma razão, revela-las aqui. É importante nesse caso lembrar que não faço jornalismo, faço cinema. Ou seja, não tenho nenhum compromisso com o que o jornalismo chama de verdade factual. Tenho vários outros compromissos, é claro. Entre eles o de tentar fazer o melhor filme possível e o de respeitar a privacidade das pessoas que estão à frente da minha câmera. Só mostrei o que eles falaram ou mostraram deliberadamente.
Você venceu o Festival É Tudo Verdade por três vezes, algo sem precedentes, duas delas com docs sobre personalidades conhecidas e outra com um homem comum chamado Nilson. Qual o maior desafio para se erguer uma narrativa sobre alguém que tem apenas sua própria existência para apresentar, e não também suas criações ou grandes feitos?
Não vejo muita diferença, a não ser na estrutura formal. Mas aí é uma diferença, por igual, entre os três filmes. Não entre dois filmes sobre personalidades e um sobre um homem comum. Os dois outros filmes, sobre Leonilson e Waly Salomão, não eram exatamente filmes sobre personalidades conhecidas, nem sobre grandes feitos. É verdade sim que eles tenham uma obra, e que sejam artistas de alguma maneira reconhecidos. Mas os três filmes são filmes sobre amigos meus, e se debruçam mais sobre as visões de mundo dos três, relacionadas à minha própria visão. Neste sentido, não sinto que o Homem Comum tenha colocado um desafio diferente. Como disse, os três personagens estão atuando e nesse sentido eles criam o filme comigo. Até o Leonilson, que falava para um gravador, sempre solitário, estava atuando, criando um personagem para deixar para a posteridade. Nilson também. O personagem Homem Comum é até mais uma criação dele do que minha. No momento em que eu ligava a câmera, ele já começa a dizer que a vida era simples, tinha que ser simples, devia ser simples. Era uma mensagem que ele queria dar. Respeitei isso e, na construção da narrativa, relacionei essa visão com a minha.