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Arte da palavra, pela potência que o ritmo impõe aos versos escritos, a canção tinha em Leonard Cohen um de seus gigantes. Como poucos outros, entre os quais incluem-se o Nobel de Literatura Bob Dylan, o mestre canadense fez de singelos temas populares verdadeiros monumentos da poesia que eleva o estado de espírito do ouvinte. Folk, gospel, blues – não houve gênero que limitasse suas crônicas existencialistas sobre o amor, o desejo, a solidão, o tempo e a fé.
Ao longo de maior parte da vida, Cohen foi um artista bissexto. Paradoxalmente, o fim veio em um momento prolífico – logo após gravar uma tríade de obras-primas que começou com Old ideas (2012), chegou ao ápice com Popular problems (2014), lançado em meio às comemorações de 80 anos, e terminou
um mês antes de sua morte, com o disco-testamento You want it darker (2016).
"Hineni, Hineni/ Estou pronto, meu Senhor", ele canta na faixa-título deste último usando a palavra em hebraico com a qual Abraão apresentou-se a Deus: "Eis-me aqui". Dois anos antes, dizia estar "baixando o tom" (em Slow), e anunciava, em uma das mais belas músicas de sua maturidade (A street):
"A festa acabou/ Vou ficar nesta esquina/ onde antes havia uma rua".
Neste ano, chegou a dizer que estava pronto para morrer. O que o levou a
esse tipo de reflexão (e a compartilhar tais sentimentos) talvez seja a pura e simples passagem do tempo, que afinal constituía um de seus temas preferidos.
Nesse contexto, é curiosa a maneira bem-humorada e autoirônica com
que Cohen, judeu de nascimento e budista convertido, falou sobre
a velocidade das coisas neste século 21.
"Não é porque sou velho/ sempre gostei do ritmo mais lento", ele cantou na citada Slow. Cohen estava para a música popular hoje como o ator e diretor
Clint Eastwood está para o cinema de Hollywood nos dias atuais: produzindo gemas atemporais sobre o deslocamento dos mais velhos nesta era de aceleramento desenfreado de tudo.
A citação a Dylan, no início deste texto, não é ocasional: após ter iniciado a carreira como escritor no Canadá, Cohen se estabeleceu na mesma cena folk
que consagrou o hoje Nobel, nos anos 1960. Alcançou o sucesso com Suzanne, canção regravada por Judy Collins, Neil Diamond e Nina Simone, mas na mesma época já havia composto Sisters of mercy e So long, Marianne, entre outras maravilhas da chamada era de ouro do blues elétrico.
Hallelujah, canção icônica da música pop do século 20, e Dance me to the end
of love, que escancara desde o título sua capacidade de jogar com as palavras, vieram na década de 1980, que foi a fase mais popular de sua carreira. Antes
da trilogia final, houve tempo para o mestre enfrentar um desgastante processo judicial contra sua empresária, condenada por desvio de dinheiro de suas contas, e um igualmente demorado retiro religioso.
Em muitas canções, a voz grave de Cohen – que ficou gravíssima com o passar dos anos – contrastava com backing vocals femininos delicados. Em outras, os arranjos simples para cordas e piano ajudavam a pôr em evidência aquilo que fazia a diferença em seu trabalho – a palavra. Mas Cohen era um artista aberto: em Nevermind, gravada com a produção de Patrick Leonard (compositor
de Like a prayer em parceria com Madonna), ouve-se um texto em árabe enquanto um contrabaixo sincopado aproxima a melodia do pop.
É o que fica deste monstro sagrado cuja morte foi anunciada na quinta-feira: uma obra imortal, que transcende rótulos e datações e exalta a inigualável
força poética da música popular.