
Se o rap brasileiro vê surgir expoentes cada vez mais talentosos e volta a ganhar espaço em lugares que até pouco tempo atrás lhe eram negados, muito se deve a Leandro Roque de Oliveira. Principal nome da nova geração de hip hop no Brasil, Emicida tornou-se quase um porta-voz do gênero. O rapper é uma das atrações do Planeta Atlântida 2017, dias 3 e 4 de fevereiro, na sede campestre da Saba – seu show será no começo da madrugada de sexta para sábado.
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Emicida garante um espetáculo redesenhado, com nova formação no palco e repertório baseado em Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, disco lançado em 2015. E, claro, sem deixar de lado as rimas que o levaram ao posto de maior rapper do Brasil na atualidade. Indicado ao Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Urbana, o trabalho mais recente de Emicida partiu de uma viagem à África, onde questões de ancestralidade e preconceito se tornaram ainda mais urgentes para ele – e ganharam mais espaço entre as faixas do disco, como explica na entrevista a ZH.
Tocar em um festival do tamanho do Planeta Atlântida é diferente? Você pensa em seus shows como um espetáculo ou algo mais orgânico?
Estou redesenhando o show, pirando em uma formação nova. De tempos em tempos, fico pirando em mudar tudo, gosto de várias formações que tivemos, mas quero experimentar uma diferente no Planeta deste ano. Gosto de fazer show aí, porque sempre sou bem recebido. E adoro festivais. A única forma que sei pensar o show é concebendo um espetáculo que é involuntariamente orgânico.
Após um ano como o de 2016, aumentou a sua responsabilidade, como principal rapper de uma nova geração brasileira, no sentido de um discurso de contestação e conscientização?
Não. Minhas preocupações são, na maioria, as que sempre tive. Sempre tive uma insatisfação muito grande com a política, inclusive com o PT. Mas, alheio a tudo isso, tive que correr, como os pretos precisam correr, porque para nós foi crise desde sempre. Quando esteve fácil? Mais preocupante do que o golpe, em si, para mim é a atmosfera que o propiciou, esses raciocínios que têm o ódio como base e nada além disso. É deprimente ver que as pessoas economicamente favorecidas se sintam tão confortáveis com essa desigualdade, que faz com que eles possam continuar tendo um grande estoque de pessoas, como peças de reposição, para lavar seus banheiros. Na cabeça desses caras que tomaram o poder, é da hora aumentar o nível de insegurança do trabalhador, porque assim gente como eles vai continuar tendo mais opções na hora escolher suas e seus domésticos.
Seu trabalho mais recente parte de uma viagem sua à África, e isso fica claro na mensagem do disco. A arte é uma forma de passar a mensagem que livros de história e escolas não conseguem passar?
Muitos nem tentam. Existe uma perspectiva turva sobre o que foi a escravidão no Brasil, o país não assume seu passado escravocrata, olha para a história e culpa sempre o estrangeiro. Todo esse passado negligenciado cria essa “não urgência” em tratar do assunto. Pensando no milhão de coisas que a África é, eu queria fazer uma grande homenagem, pois durante a maior parte da minha vida o continente inteiro me serviu como inspiração, como uma Xangri-Lá, um oásis onde minha imaginação buscou mil elementos, que acabaram por reconstruir minha autoestima, que estava em frangalhos. Quando tive a oportunidade de concluir essa homenagem, vi que ela parece um espelho do Brasil. Foi incrível ver tanta gente se identificando com este disco. Nós, que alcançamos alguma popularidade, vamos semeando convites para que as pessoas olhem com mais cuidado e empatia para o mundo. A coletividade sugerida pelo hip hop me deu esperança, e essa esperança salvou minha vida. Uso essa vida para tentar remendar uns buracos que encontrei na alma dos meus por aí.
O hip-hop sempre foi um movimento que se notabilizou por brigar pelo direito das minorias sociais. A situação melhorou nos últimos anos?
Maiorias. A gente só é minoria nos espaços onde se guardam as chaves para mudança da realidade do país, como o Congresso e os meios de comunicação. Fora dessas duas bolhas, as minorias são os ricos. Ver cabelos crespos soltos, a autoestima dos não brancos florescendo, como nos últimos anos, é magnífico. Abre-se espaço para uma nova narrativa sobre esse país. Acredito que a pauta racial deveria ser transversal, e acho que a direita fracassará por ignorá-la completamente, e a esquerda fracassará pois a ignora por inércia. Você pode colocar seu livro do Adam Smith ou do Karl Marx debaixo do braço e falar bonito onde quiser, mas é muita inocência acreditar que concepções tão antigas e distantes possam servir de bíblia para guiar esse povo, que nem se entende como nação, para a terra prometida.