
Se a crise ética é um tema global, no Brasil tem uma feição particular. Cantada em verso e prosa, a figura do malandro ajudou a consolidar no imaginário nacional a ideia de que esperto é quem dribla a lei, enquanto o "Joãozinho do passo certo", cumpridor de suas obrigações, seria um idiota.
- Se examinar o comportamento das pessoas que você conhece... se for parado em uma blitz com o carro irregular, o que vai fazer? A primeira coisa que vai perguntar é: como podemos resolver isso? - observa o professor de administração pública da Universidade de Brasília José Matias-Pereira, autor do livro Curso de Administração Pública, chamando a atenção para o outro lado da crise ética e política, alimentado pela ideia de tirar vantagem e se aproveitar da impunidade, no país marcado pela corrupção e apropriação pessoal das estruturas de poder.
- Temos um problema histórico da cultura política, em que o político confunde bens públicos com pessoais. É isso que leva o presidente do Senado a requisitar um avião da FAB para implantar cabelo em Recife - exemplifica.
Uma das representações que ajudam a entender o dilema ético nacional foi formulada por Sérgio Buarque de Holanda, autor do clássico Raízes do Brasil, ao definir o brasileiro como um "homem cordial". Para o sociólogo Renato de Oliveira, o conceito foi mal compreendido.
- Ele quis dizer que, como o brasileiro não tem referenciais institucionais para agir, para se relacionar com as outras pessoas, então ele vai levando na base da simpatia. Mas isso se dá no reverso da medalha. Quando tem que resolver um conflito, resolve na base da violência. Nesse sentido, é difícil pensar um espaço para uma reflexão, preocupação ética, porque os indivíduos a priori já renunciaram a uma argumentação racional em defesa de seus interesses. Essa defesa é feita irracionalmente, afetivamente, seja na simpatia, quando estamos de bem, seja no tapa, quando há diferença com alguém - analisa.
Com a fragilidade das instituições e dos valores coletivos, Oliveira diz que os brasileiros improvisam recorrendo a "valores de religiosidade arcaica", como uma "ética do amor ao próximo".
- Isso gera algo que eu considero uma das características principais dessa cultura política brasileira que são os "êxtases éticos". Como vivemos num mundo vivido afetivamente, irracionalmente, é como se de vez em quando acordássemos: e aí surgem as marchas contra a violência, a doação do quilo do alimento não perecível... passado o momento, a gente volta renovado para nossa cordialidade com a faca na cinta - compara.
Apesar de a religião ter perdido centralidade no mundo contemporâneo, o advogado Fábio Konder Comparato, autor do livro Ética: Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno (Companhia das Letras, 2006), salienta que o princípio da dignidade humana não significa repúdio da tradição religiosa.
- Tanto nas religiões monoteístas, quanto no budismo, por exemplo, a humanidade já havia aceito a chamada "regra de ouro" ética: "não faças ao outro o que não queres que ele te faça"; ou, no sentido positivo, expresso por Jesus de Nazaré, "faça ao outro o que você deseja que ele lhe faça". O que mudou é que, doravante, o respeito a esse princípio é um dever universal, independente das concepções ou crenças religiosas - avalia.
Enquanto antigamente os valores morais eram repassados de boca em boca, na atualidade os meios de comunicação e as redes sociais são difusores mais rápidos e potentes de comportamentos. Para a advogada Ester Kosovski, professora emérita da UFRJ e autora do livro Ética na Comunicação, é evidente que a TV e a internet inspiram comportamentos, mas a forma como cada mensagem é interpretada depende da internalização de valores respeitados pelo indivíduo.
Em Pernambuco, por exemplo, a divulgação da entrevista do delegado dizendo que não iria prender em flagrante quem devolvesse bens saqueados foi um dos fatores que contribuíram para gerar a onda de restituições - que soou como um refresco ético na ultrajada consciência nacional. Na visão do escritor pernambucano Marcelino Freire, homenageado da FestiPoa deste ano, o arrependimento coletivo contou com um papel decisivo das mães e da dignidade dos sertanejos honestos, que "seriam capazes de cortar a mão de um filho se ele assim garfasse o que é dos outros". Mas o significado do próprio saque também deve ser pensado.
- Cada um sabe onde a dor dói. Digo: assistir na TV a um rapaz fugindo, levando na mão uma televisão para casa, não sei, na verdade, quem, assim, é o verdadeiro ladrão, a TV ou o rapaz? A TV nos rouba o tempo, a TV instiga a compra, a TV mostra o glamour, a TV vende uma vida linda... Há quem não caia nesta tentação, é claro, mas é grande o apelo, é criminosa a promoção. O dia em que sentirmos que a Justiça é para todos, igual para qualquer cidadão, do político milionário ao ladrão de galinha, o nosso país entrará na linha. Não sei se estarei vivo quando isto acontecer. É pagar (caro) para ver. Aliás, pagamos muito caro, por tudo, neste país. Resta saber para onde todo esse dinheiro vai - desafia.
E O QUE VOCÊ FARIA?
Falar sobre a falta de ética dos políticos é fácil, mas como você lida com a ética no cotidiano?
No caso hipotético, por exemplo, de alguém que descobre que um amigo/a está sendo traído/a. Qual a atitude mais correta a se tomar? Ou, melhor, que pressupostos éticos deveriam ser tomados para se chegar à melhor decisão, de contar ou não?
O professor da USP Yves de La Taille, especialista em personalidade ética e psicologia da moral, diz que é difícil pensar em uma resposta sem saber o conteúdo exato da traição, mas propõe uma reflexão:
"De qualquer forma, um princípio maior é o da justiça. Imagina que a pessoa traída também costume ela mesma trair, ou seja, ser injusta: não se vê porque se deveria avisá-la já que ela mesma faz a mesma coisa. Uma coisa é certa: as relações de amizade não devem ser consideradas imperativas, ou seja, não é por que uma pessoa é amiga que se deve fazer tudo por ela. Então, volto a repetir: a pergunta que deve ser feita é: que ação mais valorizaria a justiça e a dignidade alheia. Não há regras. A moral pressupõe casos de consciência".