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- O que o rio nos dá, o rio nos tira.
Assim o pescador Ademar Fagundes Soares, 50 anos, define a situação enfrentada pela família desde que a água tapou o primeiro andar da casa onde vive com a esposa, distante a 500 metros das margens do rio Uruguai. O local da onde sai o sustento da família por meio da pesca de piava é o mesmo que os expulsou da residência de tijolos - e sem previsão para voltar.
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Ademar é um entre as dezenas de moradores de Uruguaiana, na Fronteira Oeste, que acampam em barracas e lonas nas calçadas e ruas da cidade onde 6 mil pessoas foram expulsas das suas residências por conta da cheia. O município que já decretou situação de emergência tem 13 bairros atingidos pela enchente.
Com o remo do barco de pesca em mãos, Ademar navega sobre o que era sua rua e hoje se transformou em uma extensão do rio. Assim como outros moradores, ele monitora diariamente a casa que teve de deixar para trás com medo de saques. Telhados e portas estão entre os itens escolhidos pelos que batizou de "piratas do rio".
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Não é a primeira vez que o pescador enfrenta o drama da enchente - assim como grande parte dos afetados pela enxurrada que, vivendo em áreas próximas ao leito, convive com o medo da cheia. Em 1983, na maior enchente já registrada na região, ele estava lá. Em 2014, também.
- A água dessa vez veio mais depressa e chegou a 1,6 metros da minha casa. Mas não podemos nos queixar. A vontade de Deus não se pode mudar - diz.
No começo da semana passada, a água invadiu o pátio da residência do homem, morador do bairro Bela Vista. Mas, às 4h30min da madrugada, adentrou na casa. Em duas barracas armadas com lonas vindas de doações, Ademar divide a moradia improvisada com a esposa, o filho, a nora e dois netos. É justamente a rede de solidariedade que se formou na cidade que dá um alento aos desalojados e desabrigados. Durante a manhã deste domingo, carros paravam e abriam os porta-malas com a ajuda: alimentos, roupas e até almoço pronto: um arroz com linguiça que Ademar comeu ainda de pé.
No interior do barracão, cama, fogão, televisão, ventiladores, roupas e cobertores dividem espaço com a família. Submerso junto às casas, que só deixam os telhados à vista, ficou o guarda-roupas novo que Ademar nem terminou de pagar.
Pelas ruas de Uruguaiana, banheiros químicos foram colocados para o uso de famílias acampadas - mas não o suficiente para tanta gente espalhada, dizem os moradores. Entre elas está a doméstica Rosa Maria Viana, 37 anos. Durante a manhã, aproveitando o sol que brilha forte desde cedo na cidade, ela lavava e estendia as roupas dos quatro filhos em um varal armado às margens da água que cobre parte da rua. Lá adiante, mostrou o cenário da sua casa: só se enxerga parte do telhado.
- Nunca tinha visto tanta água. A gente fica olhando para ver se o rio baixa. Só vendo para acreditar que essa água vai embora - lamenta.
Esta é a segunda vez que a mulher, que também viveu a enxurrada de 1983, precisa improvisar um lugar para morar. A mãe, a aposentada Irma Minho, 66 anos, está dormindo em um barracão junto do marido. Não quis ir a um dos quatro abrigos disponibilizados pela prefeitura para não deixar tudo para trás.
- Eu estava bem descansada em casa, com tudo limpinho e bem quentinha, e veio a enchente e me correu. Chorei muito - conta Irma.
Agora, resta à população afetada pela cheia torcer para que a água recue e, pouco a pouco, possa retornar da onde nunca gostaria de ter saído e iniciar o trabalho de limpeza. E a reza tem dado certo.
Desde as 6h da manhã deste domingo, o rio Uruguai estabilizou em 13,8 metros acima do nível normal na cidade. Em Itaqui - município onde um quarto dos 39 mil habitantes segue fora de casa - o rio baixou 30 centímetros entre o sábado e hoje, e está 12,89 metros mais alto do que o habitual. Em São Borja, já recuou mais de quatro metros e há moradores retornando para suas residências desde ontem.
Em Uruguaiana, a chamada Cota 53, estabelecida no Plano Diretor da cidade, proíbe construções próximas ao leito do rio Uruguai. Porém, segundo o prefeito da cidade, Luiz Augusto Schneider, muitas dessas famílias ribeirinhas atingidas pela enchente desrespeitam o limite.
- Se todos respeitassem a cota não haveria mais desabrigados em Uruguaiana. Mas eles constroem, e fica esse vem e volta. Para resolver isso, precisaríamos de uma solução de moradias com auxílio do governo federal para retirar essas famílias e fazer a reurbanização - aponta.
Sobre a ponte internacional que separa Brasil e Argentina pelos municípios de Uruguaiana e Passo de los Libres, a dimensão da enchente salta aos olhos e o rio se confunde com as ruas e lavouras. Da conhecida imagem de Iemanjá sobre um pedestal no Clube Tamandaré, só se vê a santa em meio à água. Que ela ore por nós, pedem os uruguaianenses.
Clique no município atingido e saiba o número de pessoas fora de casa:
Chuva causou duas mortes e mulher segue desaparecida
A chuva que atinge o Estado já provocou duas mortes, de Eracildo Luiz Assmann, 56 anos, em Arroio do Tigre, e José Lindomar da Silva, 40 anos, em Jacutinga. A namorada de Eracildo, Paula Thom, 23 anos, segue desaparecida. O carro em que o casal estava caiu no rio Caixão, em Arroio do Tigre, na noite do último sábado.
Maior cheia das últimas três décadas
Enxurrada como a deste ano não era vista no Rio Grande do Sul desde 1983, que atingiu cidades como Itaqui, Iraí, São Borja e Uruguaiana.
VÍDEO: Veja cenas da enchente em Itaqui