
Gravada por Leandro Boldrini em fevereiro deste ano, dois meses antes da morte do menino Bernardo, a audiência de conciliação em que ele se comprometia perante o juiz da Vara da Infância e da Juventude de Três Passos, Fernando Vieira dos Santos, e da promotora Dinamárcia Maciel de Oliveira, a ser um pai mais presente, revela que o médico não quis abrir mão da guarda do filho e recebeu o prazo de 90 dias para mudar o comportamento. O áudio da audiência - obtido nesta terça-feira por ZH - foi registrado por Boldrini no próprio celular e acabou sendo recuperado pela perícia.
Confira a íntegra do áudio:
Na gravação, o juiz se mostra surpreso por Bernardo ter ido ao Fórum pedir ajuda e relata que havia resistência da família do garoto de tratá-lo melhor. Fernando Vieira dos Santos também interpreta a procura de Bernardo pela Justiça como o último recurso de ajuda, já que ele estava "esgotado" com as condições familiares ruins e queria morar com outras pessoas. "Esse guri deve ficar na minha casa. Como meu filho, como uma coisa natural, assim", diz Leandro Boldrini.
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A vida de Bernardo tornou-se dramática, especialmente após o suicídio da mãe, Odilaine Uglione, em 2010. Logo depois a madrasta dele, Graciele Ugulini, foi morar com Leandro Boldrini e teve início uma guerra familiar. Bernardo foi ao Fórum em janeiro de 2014 e disse que não recebia atenção em casa. No dia 31 de janeiro, o Ministério Público (MP) ingressou com o pedido de audiência. Em 11 de fevereiro, a audiência de conciliação entre pai e filho foi realizada, e Leandro se comprometeu a dar mais atenção ao garoto e ajudar a melhorar o relacionamento com a madrasta.
O juiz acabou autorizando que Bernardo continuasse morando com o pai, mesmo após o MP abrir uma investigação contra o médico por abandono familiar. Confira a íntegra do áudio:
Juiz: Tudo bem? Pode sentar. Certo, doutora Fernanda, nós marcamos uma coisa meio inusitada, em cima do laço, mas é pela situação, né? Uma situação muito tocante para mim, particularmente, vou iniciar falando disso. O Bernardo esteve aqui no Fórum. É uma coisa que nunca tinha me acontecido. Uma criança vir pedir ajuda, pedir socorro aqui no Fórum, dizer 'ó, eu quero falar com fulano, com juiz', 'eu tô precisando'. Nunca tinha me acontecido isso. Foi algo que me tocou.
Então, a gente marcou essa audiência para tentar conversar, a respeito do doutor Leandro sobre essa situação do Bernardo. Nós conversamos bastante com ele, depois ele foi encaminhado ao Ministério Público, que já tinha um expediente em andamento desde novembro de 2013. Com algumas notícias que vinham do conselho tutelar, da escola, do serviço social do município também. A impressão que a gente, né, doutor Leandro, presumíveis as dificuldades de vida dele, pessoais, por tudo que aconteceu com a mãe do Bernardo. Ele está em uma situação, a postura dele revela, (de) abandono afetivo. Pelo menos, é o que ele sente. Do pai, né, e uma certa aversão da madrasta. Essa é a queixa do Bernardo. Ele traz para nós um quadro que 'em casa é o lugar onde menos estou, meus problemas eu até falo para o pai e não adianta. A madrasta só me xinga'. A vontade dele é morar em outro lugar. Esse é o pedido dele. Qualquer pessoa que chegar e conversar com ele, que ele tiver disponibilidade de falar, vai ouvir isso dele. É algo que ele fala com muita naturalidade. 'Não quero mais ficar lá em casa, quer achar outro lugar, com outra pessoa para me cuidar'. Bom, então isso nos preocupa, né, doutor Leandro?
Evidente que não estamos tratando de um caso como a gente vê, que há uma, é muito comum ver questões de queixa do filho em relação ao pai, ver que o filho está aprontando em casa, e tal, uns dois meses atrás tinha uma menina que estava com uma queixa com a mãe. Fomos investigar e não era isso. E o Bernardo, pelo contrário, ele vai onde quer, o doutor Leandro deixa ele ir visitar os colegas e tudo. Mas, há uma certa falta de referência dele, da família, da casa dele como local de proteção. Ele está com dificuldade de se perceber como alguém querido dentro da casa. Uma certa indiferença paterna e uma agressividade da madrasta. Então, doutora, a gente chamou essa audiência hoje, tomamos o cuidado de fazer em cima do laço, porque o Bernardo na fala dele traz que o pai não gosta quando 'eu me queixo', 'vou buscar ajuda'. Tem uma situação descrita, claro que ninguém gosta, doutora Fernanda, de receber uma visita do Conselho Tutelar, mas mostra uma resistência da família do Bernardo de tentar entender o problema e resolver o problema. Então, a audiência é para conversar esse assunto. Tivemos o cuidado de fazer essa intimação hoje temendo que o Bernardo sofresse algum tipo de represália, talvez até de um constrangimento em relação à família. Ele está bem tranquilo hoje, falando com tranquilidade, que lhe é peculiar, a respeito desse assunto. Gostaríamos de ouvir, doutora, o que vocês pensam.
Promotora: Só gostaria de fazer um parênteses, que, no mês de novembro, nós recebemos um encaminhamento feito em conjunto pelo conselho tutelar, CREs (Coordenadorias Regionais de Educação) e pela Escola Ipiranga. Os três órgãos me mandaram uma correspondência, com relatórios, enfim, dizendo da preocupação com o menino. Do seu filho, no caso, o senhor que é uma pessoa respeitada, conhecida, enfim. E que o menino tem esse capítulo aí, essa situação trágica no passamento da mãe dele. E que o menino, no resumo do relato desses três órgãos, o menino estaria sendo cuidado pelas famílias amigas. E não pelo pai e pela madrasta diretamente. Bom, feito isso, eu solicitei que me mandassem cópias dos atendimentos, que me relatassem da melhor forma do caso, pedi que fizessem histórico dos atendimentos. Porque tinham me mandado uma notícia única, né. Então eles me mandaram esses documentos onde eles indicavam que o Bernardo manifestaria que gostaria ou de morar com a família aqui, de Três Passos.
Confira trecho de áudio em que a promotora conta que Bernardo gostaria de morar com a avó:
Leandro: Sim, o tio Carlinhos e tudo.
Promotora: Sim, que ele gostaria de morar com essa família ou então com a avó em Santa Maria. Bom, o que aconteceu. Considerando que a avó tem um vínculo consanguíneo, é mãe da mãe, enfim, nós mandamos uma carta precatória para que essa senhora fosse...
Juiz: Só pra interromper, doutora Fernanda, que a lei fala na gradação. Família natural, família extensa, família substitua. São três graus.
Promotora: E eu queria saber da avó, se ela tinha contato com esse menino e, se tendo algum contato, sabia se essa história era pertinente. Então, foi essa carta precatória, demorou um pouquinho para ser cumprida, mas a avó disse que apesar do pouco contato com o neto, que se o neto precisasse dela, ela estaria à disposição, mas que ela não conhecia a realidade, ao certo, do que ele estava passando aqui. E, quando o expediente ficou pronto, maduro, para que então eu ouvisse o senhor e o casal de Três Passos, eu fui surpreendida com o doutor, que chegou na promotoria com o Bernardo.
Juiz: Ele foi barrado lá embaixo. O guarda (disse) 'como assim?' 'Não, mas é que eu quero falar com ele', não sei o que, então, chamou o rapaz. Então, o Gabriel veio, e me disse 'tem um rapazinho que quer falar com o senhor'. 'Mas, o que que é?' 'O nome dele é Bernardo, mas eu não sei quem ele é'. Aí, quando ele entrou na sala, que eu vi, daí claro que fomos conversando, falei 'pô, mas que que foi?'. Ele começou a falar e se emocionou muito ao relatar a situação, né. Mas, enfim, aí eu encaminhei ao MP.
Promotora: Então, quando ele chegou, eu disse 'olha, eu te conhecia só de relatórios, eu ia fazer uma audiência aqui na promotoria chamando pai, chamando. 'É verdade que tu gosta muito do fulano, beltrano?'. 'Sim, sim, eu tava na casa deles agora, eles me cuidam muito bem'. Então, aquela função.
Advogada: É a tia Ju?
Leandro: Tia Ju e o Carlinhos, lá.
Promotora: Então, o que nós fizemos: eu solicitei ao meu funcionário que fosse a senhora ali, dona Ju, né? Fosse ver se tinha algum fundamento com o que o menino dizia. E eles disseram que adoram o Bernardo, que são seus amigos, e que, de forma informal, assim como vem acontecendo, eles têm o maior prazer de cuidar do Bernardo. Mas, se fosse para pegar a guarda do Bernardo, eles não querem, porque eles não querem se indispor com o senhor.
Leandro: Claro, eu imagino.
Promotora: Então, com isso aí, com esse inusitado, porque para mim, estou com 15 anos de profissão, e é a primeira vez que o menino me procura nessa situação. Então, já houve casos inversos, o pai trazer pra me entregar porque não quer mais ficar, mas a criança nos procurar, nunca houve. Então, eu judicializei, coloquei tudo em um papel, juntei os relatórios que nós tínhamos para que a gente fizesse essa reunião, essa audiência, para efeitos práticos, para que alguma coisa pudesse ser resolvida aqui. E preservando sempre a Justiça para que não desse mais deslocamentos.
Juiz: Isso a gente sabe, né doutora, que pessoas assim que são mais visadas. É muito complicado. Então, doutor Leandro, a gente tem essas alternativas para a situação do Bernardo. Eu conversei bastante com ele. A doutora Dinamárcia presenciou. Eu disse 'vamos conversar com o pai e a madrasta, vai que isso melhora'. 'Vamos tentar dar um jeito'. Acho que ele se sente esgotado. Acho que ele deve ter tentando muito, de alguma forma, se comunicar. Sei lá se ele foi claro com isso, com vocês, mas a impressão que dá, né doutora, é que ele se sente desvinculado afetivamente, doutor, não daquela forma mais forte, que a gente vê com a família. É aquela situação de abandono afetivo. Ele fica assim, 'poxa, e agora vou fazer o quê? Correr e contar para quem?'. E ele vem aqui no Fórum. É uma situação bem difícil. Então, doutor Leandro, o que o senhor acha dessas alternativas? Morar com a Ju, com a avó, o que o senhor pensa a respeito disso?
Em áudio, juiz descreve o relato de abandono familiar:
Leandro: Eu acho que esse guri, ele deve ficar na minha casa. Como meu filho, como uma coisa natural, assim. Tu entendeu? Porque assim, ó: com certeza, a tia Ju e o tio Carlinhos, isso aí, são nossos amigos. Não teria fundamento. Com a avó materna.
Boldrini defende que Bernardo fique em sua casa, em áudio:
Advogada: Então, doutor, com a avó materna, é uma coisa que se arrastou. Principalmente depois do falecimento da Odilaine. E gerou processo, processo tramitou em Santa Maria. Foi feito na época, inclusive, um laudo. Um laudo que foi oficiado em Santa Maria. E a avó, ao contrário do mencionado aqui, trouxe até a pasta. A avó não apresentava condições de cuidar a criança. É uma situação bem complicada, complicada já com a mãe. Mãe e filha, Odilaine e Jussara, não tinham um relacionamento saudável.
Leandro: Não tinham um relacionamento saudável.
Juiz: Certo, entendi. Então, essa alternativa da avó não estaria de acordo?
Leandro: A pior, a pior. Se existissem todas, acho que essa seria a pior.
Advogada: Até aqui está a avaliação psicológica. Tem uma situação da avó com bebida alcoólica. Toda uma situação complicada, que o Bernardo inclusive conhecia essa situação. Mãe e filha não se davam bem. A própria Odilaine saiu de casa aos 14 anos e foi para um...
Leandro: É uma situação parecida com o que está acontecendo agora.
Advogada: A Odilaine saiu de casa em razão de que não tinha um relacionamento amoroso com a mãe. E a Odilaine foi morar em casa de passagem?
Leandro: Em casa de passagem e depois no padrinho dela.
Advogada: É, a Odilaine cortou o relacionamento com a mãe. E aí ,depois, somente com o nascimento do Bernardo é que houve uma aproximação muito pequena.
Leandro: E muito tempo depois.
Advogada: E muito tempo depois. Não tem esse relacionamento com a avó. É bem complicado. Inclusive tem processos, processos que estão tramitando aqui, e que a própria avó quer de volta objetos que ela deu para a Odilaine de presente, ela quer de volta.
Juiz: E essa alternativa da madrinha?
Promotora: Que reside aqui.
Como teria ocorrido o crime: