
Ao vasculhar o interior do prédio da boate Kiss, nesta quarta-feira, Santa Maria não irá lembrar apenas a maior tragédia recente do Rio Grande do Sul, a qual matou 242 jovens e deixou centenas com sequelas que ainda perduram. Mais do que tudo, a cidade irá expor que continua dividida por sentimentos conflitantes, que afloram entre a indiferença e a revolta.
Inspecionar as dependências da Kiss será como remexer numa ferida aberta, a qual ainda paralisa a vida dos santa-marienses, em maior ou menor grau. Uns querem esquecer o 27 de janeiro de 2013, atribuir o que ocorreu a uma fatalidade - mesmo que tenha sido provocada por uma sucessão de malfeitos e omissões. Outra parcela, indignada, assegura que a rotina não pode ser retomada enquanto os responsáveis pelo incêndio estão impunes.
O fato é que Santa Maria cindiu entre os que defendem o perdão e os que clamam por justiça. No início da tarde de ontem, enquanto funcionários da empresa contratada para a limpeza montavam as tendas cobrindo a fachada da boate Kiss, na Rua dos Andradas, pedestres passavam apressados. Poucos olhavam o que acontecia, mas não se detinham e logo se misturavam à multidão.
Há quatro décadas atuando em Santa Maria, o pároco Francisco Bianchin, o padre Xiko, é um dos intérpretes do que vai na mente dos moradores. Prevê que a faxina na boate irá "reavivar a dor e o sofrimento" das famílias, mas que a medida é necessária. Avalia que o impacto da tragédia não foi superado, embora os ânimos tenham serenado.
- Creio que agora já é possível fazer isso (a limpeza). Poderá transformar o lugar, triste na sua aparência, num momento de esperança e confiança - diz o sacerdote.
Para o médico José Otavio Binato, que analisa o drama desde o início, a comoção aos poucos se dissipa. Avalia que 80% da população absorveu a Kiss como sendo parte de um passado dolorido, mas que deve ser superado. O restante ainda padece os efeitos e protesta por justiça.
- Para esses, é uma recordação negativa. Outros pensam que é hora de cicatrizar a ferida - diz Binato.
Primeiro a Justiça, depois o memorial
Quem ficou de vigília, em frente à Kiss, foram pais e mães das vítimas. Às 7h15min, Flávio Silva, 53 anos, já estava no local, na Rua dos Andradas, sem ter tomado o café da manhã. Presidente do Movimento do Luto à Luta, vestia uma camiseta preta com o logotipo de um coração fraturado, remendado por um curativo adesivo. Às 14h, ainda em jejum, contou como se sentia:
- Não consegui dormir à noite. Não tenho fome, ela vem e vai.
Prestador de serviços na construção civil, Flávio deseja achar os pertences da filha, Andrielle, que morreu aos 22 anos, asfixiada pela fumaça venenosa da Kiss. Soube que há calçados, bolsas, tênis, celulares, bonés, carteiras e roupas dentro da boate.
- Faltou um dos sapatos da minha filha - recorda Flávio, ao lado de outros familiares de vítimas.
Como integrante do Luto à Luta, ele percebe diferentes reações entre as pessoas que deparam com o desenho do coração partido. Há quem torça o nariz ou finja não ver. Uma minoria puxa conversa, mostra-se solidária, incentiva.
- Estamos de acordo que a cidade cresça. Mas não podemos sepultar uma tragédia - argumenta.
Familiares gostariam que o edifício que abrigou a boate Kiss abrigasse um memorial em homenagem às vítimas. No entanto, recusam a ideia enquanto os acusados pelas mortes não forem julgados. Também em vigília em frente ao prédio destruído,
Jacqueline Malezan, 49 anos, do Grupo Mães de Janeiro, desconfia que seria uma manobra para desviar o foco do principal, a busca por justiça.
- Se fazem o memorial antes, vão deixar o resto como está - teme Jacqueline, mãe de Augusto, fulminado pelo gás tóxico que emanou do teto esponjoso da Kiss na noite do incêndio.
Como será a limpeza
A estrutura
Na Rua dos Andradas, em frente ao prédio, foi montada uma estrutura formando cinco tendas cobertas com lona, encobrindo a fachada e as laterais. Uma grande lona foi esticada da ponta das tendas sobre o telhado isolando a frente do prédio para impedir que o pó decorrente da limpeza se espalhe no ambiente externo.
Um sistema de iluminação interna com geradores e refletores auxiliará no trabalho e uma linha de exaustão minimizará impactos da poeira e das cinzas finas.
Nessa estrutura, ficarão os equipamentos de proteção e de apoio às atividades, como caçambas. Trabalhadores poderão usar um banheiro com chuveiro para higiene pessoal após o serviço. No interior também ficará um caminhão onde serão depositados os resíduos. Esse o veículo permanecerá no local até encher e fará o transporte ao destino final. Caso encha antes do término, será substituído.
A previsão é de que o trabalho demore sete dias, com atividades entre 8h e 18h. O local terá vigilância 24 horas, feita pela Brigada Militar.
Dentro da boate
A boate será dividida em duas áreas: uma onde estava localizado o palco (início do incêndio) e outra onde se encontravam o bar e a área VIP.
Na primeira, deverá ser removida parte da estrutura que sustentava o forro, onde ocorreu o incêndio, com raspagem e limpeza do piso e acondicionamento em sacos plásticos, para descarte nos contêineres.
Da segunda área, deverão ser removidos o mobiliário e os equipamentos eletrodomésticos.
Gás de geladeiras e equipamentos de refrigeração devem ser removidos e acondicionados em contêineres.
A limpeza e a higienização das paredes internas deverão ser manuais, com a utilização de equipamentos de proteção individual, sem água em abundância.
Objetos pessoais das vítimas serão acondicionados em embalagens para posterior higienização e devolução.
Após a remoção
Os resíduos removidos serão destinados para a unidade da Ecottotal Sistemas de Gestão, em Capela de Santana. O transporte será feito pela Transportadora Dinâmica. Ambas as empresas são licenciadas pela Fepam.
Depois da limpeza, será realizada sondagem e amostragem de solo, em duas profundidades (20cm e 50cm), para análise de toxinas. Serão escolhidos os pontos em que for verificada maior concentração de cinzas residuais resultantes do incêndio.
Relatório técnico contemplando todas as etapas do trabalho de limpeza, contendo fotos e documentação da remoção de resíduos, sondagem e amostragem de solo e resultados das análises deverá ser encaminhado à Fepam em 45 dias após a conclusão do trabalho.