
Antes de matar a ex-esposa, Isamara Filier, 41 anos, o filho João Victor, oito anos, e mais 10 pessoas em Campinas, São Paulo, Sidnei Ramis de Araújo, 46 anos, escreveu cartas e gravou áudios em que expõe ódio às mulheres e incentiva o feminicídio. Conforme especialistas consultados por Zero Hora, trata-se de um discurso machista que precisa ser combatido para reverter os índices alarmantes de violência contra a mulher no país.
Araújo cometeu os assassinatos minutos antes do início de 2017, em uma festa de Ano-Novo, e depois se matou. Em cartas e áudios, divulgadas pelo jornal O Estado de S.Paulo, o assassino revela que vinha planejando o crime e que queria cometê-lo ainda na noite de Natal. "Eu tentei pegar a vadia no almoço do Natal e dia da minha visita, assim pegaria o máximo de vadias da família", escreveu referindo-se à ex-esposa e às mulheres da família dela. "Agora os pais quem irão se inspirar e acabar com as famílias das vadias", acrescentou.
Isamara vinha procurando a polícia há 1o anos por causa do ex-marido. Entre 2005 e 2015, ela registrou cinco boletins de ocorrência contra ele por agressões e ameaças, inclusive de morte. Em 2012, ganhou a guarda do filho na Justiça depois de denunciar que o menino teria sido abusado sexualmente pelo pai. Em uma comemoração do dia dos pais na escola, João Victor teria dito a uma professora que não gostava do pai e que iria matá-lo quando crescesse, revelou a educadora ao site UOL.
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Promotora de Justiça do Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar do Ministério Público do Estado de São Paulo, Silvia Chakian afirma que as cartas escritas por Araújo revelam um discurso muito comum nos casos de violência contra a mulher e, por isso, devem servir para a reflexão. A promotora alerta que, embora tenha causado comoção por ter sido cometido na noite de Ano-Novo e por envolver um número grande de mortes, o caso é mais um dos inúmeros assassinatos motivados pelo machismo no país. Conforme um levantamento do Instituto Patrícia Galvão, 13 mulheres são assassinadas por dia no Brasil, o quinto país com maior taxa de homicídios de mulheres no mundo.
– Essas cartas revelam a raiz estruturante da violência doméstica no Brasil. Parece que é um caso isolado, mas os tribunais do júri estão abarrotados de casos assim. O discurso (do assassino) nos remete aos que vemos diariamente nas redes sociais diante de qualquer sinal de conquista e autonomia feminina – afirma.
Ao afirmar que tinha "raiva das vadias que se proliferam e muito a cada dia se beneficiando da lei vadia da penha", Araújo revela um discurso de ódio e intolerância contra as mulheres que ele entende que não têm um comportamento "adequado", segundo a promotora.
– Isso é muito mais comum do que a gente imagina. Mais do que nunca, um caso como esse nos dá certeza que temos que avançar na implementação de políticas para mudar essa cultura. Fazer um trabalho, desde a educação infantil, de desconstrução dessa masculinidade onde o homem é o senhor da vida e da morte da mulher, onde o homem não sabe lidar com a perda, com a frustração ou com o sentimento de injustiça – relata Silvia.
Em um artigo publicado no HuffPost Brasil, a antropóloga Debora Diniz afirma que Araújo pode até ser uma "daquelas figuras que os manuais de psiquiatria descrevem como 'psicopata', mas a loucura não explica as raízes da fantasia misógina do matador". Conforme a pesquisadora, as cartas escritas pelo assassino revelam que ele "matou Isamara e sua família porque não suportou a separação, porque não reconheceu a força da lei penal contra seu abuso patriarcal, porque se viu sem o mando doméstico como soberano".
Nas cartas, Araújo afirma: "não sou machista e não tenho raiva das mulheres (essas de boa índole, eu amo de coração...)", discurso que, segundo a vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), Maria Berenice Dias, demonstra o contrário:
– É uma postura completamente machista, de não aceitar a mulher que não faz o que ele quer, só as "de boa índole". Essas cartas repetem um modelo de machismo que, infelizmente, ainda impera na nossa sociedade, o sentimento de propriedade da mulher, em que os homens se consideram no direito de castigá-las caso não hajam como eles querem – afirma.
Por isso, segundo a pesquisadora, é preciso que a questão de gênero seja cada vez mais discutida no país. Debora, em seu artigo, escreveu: "Para alguns, o ódio permanece nas palavras; para outros, como Sidnei, o ódio é uma arma que mata".
* Zero Hora, com agências
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