
* Professor da Faculdade de Administração, Contabilidade e Economia da PUCRS
Na última quarta-feira, dia 28 de maio, foi publicada em Zero Hora extensa reportagem que apresentava o recém criado Índice de Desenvolvimento Estadual - RS (iRS). Trata-se do fruto de uma parceria estabelecida entre o jornal e a Faculdade de Administração, Contabilidade e Economia da PUCRS. Os resultados deste índice mostram o Rio Grande do Sul em quarto lugar entre os Estados brasileiros em 2012, que é o último ano da série calculada. Em termos das dimensões que compõem o iRS, os gaúchos ocupam a quinta colocação em padrão de vida, a segunda em longevidade e segurança e a oitava posição em educação. No entanto, não quero aqui retomar os números que estão primorosamente apresentados na matéria original. Também não quero defender estes resultados ou, menos ainda, justificá-los. Quero falar de outros aspectos relacionados ao surgimento do iRS.
Na sua concepção, a proposta foi a de criar um índice de desenvolvimento que atendesse a alguns critérios fundamentais. Primeiro, o índice precisaria ser de fácil compreensão pelo público - índices complexos tendem a ter problemas na hora de comunicar a mensagem que carregam. Segundo, deveria ser transparente, tanto do ponto de vista dos dados utilizados quanto no que toca ao método de cálculo - assim, todos ficam mais confortáveis quando obtém a informação, pois sabem de onde ela vem e como foi tratada. Por fim, também precisaria ter um referencial teórico claro. Ser de fácil compreensão e transparente são elementos automaticamente necessários quando se pensa em transmitir uma informação complexa - isso é parte natural do processo de comunicar com qualidade e efetividade.
Mas, o que o referencial teórico, este termo acadêmico tão enfezado, tem a ver com isso? Por qual razão ele é tão importante? Para tratar disso, permitam que eu me reporte a um clássico do cinema japonês, Rashomon. Esse filme de 1950, dirigido por Akira Kurosawa (1910 - 1998), conta a história do julgamento de um crime no qual quatro testemunhas, com ligações variadas com a vítima, são ouvidas e narram a sua versão do fato. O filme apresenta, em flashbacks, esses quatro testemunhos. São versões bastante distintas, seja no objetivo desenrolar dos fatos, seja na motivação que os incitou. São quatro "verdades". Com isso, Kurosawa nos leva a questionar os diversos aspectos que permeiam a avaliação do fato. Desde as expressões faciais dos atores até as sombras do cenário importam. O mesmo fato, quatro versões.
Transportando essa analogia ao assunto aqui abordado, quando se trata de desenvolvimento, de que "verdade" estamos falando, afinal? O que é ser um Estado desenvolvido? O papel fundamental e indispensável do referencial teórico é o de responder esta pergunta da maneira mais direta e clara possível. Por muitos anos, se manteve hegemônica a perspectiva de que o desenvolvimento estaria suficientemente traduzido na dinâmica econômica, no crescimento econômico, no PIB. Apesar de já bastante desgastada, essa linha de pensamento ainda persiste e é defendida por alguns pesquisadores e representantes públicos da sociedade.
No entanto, a partir da década de 1990, com o lançamento do Relatório de Desenvolvimento Humano, pela ONU, esta vertente passou a ser questionada de maneira explicita. A ideia semeada naquele momento, e que floresce até hoje, é a de que se desenvolver significa ampliar o potencial de escolha das pessoas. Dito de outra forma, o que importaria seriam os fins, ou seja, o que as pessoas efetivamente são e fazem, e não os recursos de que elas dispõem para tal. Os recursos, neste contexto, não seriam boa variável de referência quando se assume que nem todas as pessoas, do alto das suas particularidades individuais e institucionais, conseguem fazer o mesmo uso deles.
Esta proposta, devida especialmente ao economista indiano, Nobel de Economia, Amartya Sen, lançou um novo paradigma: o do desenvolvimento humano. É este paradigma que foi adotado como referencial teórico do iRS. Tratamos de avaliar o que as pessoas são e fazem, efetivamente. Nem sempre é possível a tradução perfeita em variáveis, temos de reconhecer, mas a proposta e esforço neste sentido são bastante claros no escopo do índice proposto. Muitos índices carecem de assumir abertamente qual sua perspectiva de desenvolvimento, o que interfere diretamente na seleção das variáveis e cálculos posteriores. Como é possível mensurar algo que não se sabe com firmeza o que é?
O iRS poderia ter sido arquitetado com base em outra perspectiva de desenvolvimento. Poderíamos ter estabelecido um índice de desenvolvimento fundamentado, por exemplo, na eficiência do setor público enquanto provedor. Ou, ainda, ter ancorado o índice apenas na dinâmica econômica, como tantos outros. Todas estas, "verdades" diversas. Cada uma com suas razões, suas justificativas, seus méritos e limitações. Não existe índice de desenvolvimento quando não se especifica o que se entende por desenvolvimento. Para o iRS, a referência é o desenvolvimento humano. Não se trata de afirmar que é a melhor ou a pior perspectiva. Se trata, apenas, de explicitar qual é ela.