
É um clichê crítico dizer que a literatura contemporânea se faz com protagonistas em busca de algo difuso: um sentido, um lugar na realidade ou na sociedade em que vivem, um diálogo efetivo. Muitas vezes essa busca temática é um reflexo da busca literária do próprio autor, construindo sua voz, seus modos de narrar, à medida que seu personagem persegue uma inviável, porque infrutífera, epifania. Chico, nesse sentido, é apenas meio contemporâneo, ou pós-moderno, como sua obra também já foi definida. Chico lida, sim, com seres perdidos, personagens sem lugar em uma busca que só revela a tristeza de suas vãs aspirações. A diferença é que, ficcionista que se lançou à carreira já em idade madura, ele se vale de uma voz própria, clássica, elegante, a voz segura que maneja com maestria na letra das canções. Se o resultado nem sempre é um casamento muito feliz, a origem está muitas vezes no esquematismo com que o autor encadeia suas tramas, nunca no estilo marcante de sua prosa.
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Chico fez breves e pontuais incursões pela literatura ao longo de toda sua carreira. Seu primeiro conto foi publicado na imprensa ainda nos anos 1960. Em 1974, lançou Fazenda Modelo, uma alegoria literária que se inspirava em Animal Farm, de George Orwell, para satirizar o Brasil desenvolvimentista da Ditadura Militar. O lançamento de Estorvo (1991), no entanto, marca o real ponto de partida de sua carreira literária - ignorando Fazenda Modelo, o livro era definido já na sobrecapa como "o primeiro romance de Chico Buarque". Uma mirada em conjunto da obra que construiu a partir daí, portanto, deve partir dessa labiríntica narrativa em tom de pesadelo na qual um homem se perde no Rio, em andanças incertas movidas não por um plano definido, e sim por uma paranoia despertada pelo toque da campainha em seu apartamento.
O narrador, sem nome - antes anômico do que anônimo - perambula impelido por uma vaga sensação de ameaça, encontra a irmã, que vive uma vida confortável devido aos esquemas espúrios do marido, coloca-se em risco de vida, bem como aos que o cercam. É um romance no qual cada passo dado pelo narrador o leva - e ao leitor em companhia dele - a uma nova zona de desconforto e incerteza. Em Estorvo Chico inaugura um procedimento que repetirá ao longo de sua carreira: seus romances são construídos de tal forma que, finda a leitura, é difícil recuperar mesmo o fiapo de enredo que desenvolvem, mas a sensação provocada pelo texto, principalmente a de perplexidade, perdura.
De um certo modo Estorvo também prenuncia um universo temático caro a Chico, o da decadência. Em Benjamim (1995), um homem antes no auge da beleza e do amor se vê diante de um pelotão de fuzilamento e repassa a vida que o levou até ali. Em Budapeste (2003), ainda seu melhor romance, um homem seduzido por uma visão de outra existência, especular à sua, uma sedução iniciada pelo idioma, abandona a vida que tinha e se entrega, sem sucesso, a tentar reconstruir-se como um outro. O livro mais recente, Leite Derramado (2009), é praticamente uma atualização contemporânea de certas leituras canônicas de Dom Casmurro, de Machado de Assis, como um libelo contra a decadente elite nacional - o que explica por que foi tão bem recebido por um nome como Roberto Schwarcz, por exemplo, porta-voz de tal interpretação.
Não deixa de ser significativo que Chico, ele próprio flor mais brilhante de uma família antiga e influente, versão possível de aristocracia tupiniquim, se empenhe em retrata os frutos inanes da elite brasileira, vidas privilegiadas, ultrapassadas por um país do qual se serviram e para o qual não servem mais.