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* Membro do Instituto de Tecnologia & Sociedade do Rio de Janeiro (ITSrio.org). Pós-doutor em Comunicação pela Universidade das Nações Unidas e pela UFF, com doutorado na Inglaterra em Comunicação. Professor da ESPM Rio.
A torcedora do Grêmio flagrada ao gritar "macaco" para o goleiro Aranha, do Santos, poderá ser indiciada por injúria racial qualificada. Racismo é crime, e há imagens que comprovam o comportamento da torcedora. Num país em que 92% acreditam haver racismo, mas só 2% se consideram racistas, precisamos celebrar quando o tema recebe a devida atenção.
Mas quem deve julgar a torcedora pelo seu ato de racismo? A justiça ou a sociedade? E se for a sociedade, como pode a torcedora pagar pelos seus atos? Será que 20 anos é tempo suficiente para a torcedora se redimir, ou será que seus atos merecem nunca ser esquecidos?
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Uma decisão da Corte Europeia de Justiça recentemente definiu o "direito ao esquecimento". Em tempos de luta por mais privacidade, um espanhol reclamava que, ao buscar seu nome na rede, aparecia um link publicado há 16 anos sobre uma dívida já paga, o que violaria sua honra. A Corte aceitou o pedido e solicitou a retirada do histórico online dos dados "inadequados ou que não sejam mais relevantes".
Nesse caso pioneiro de revisionismo histórico, ficou acertado que indivíduos têm direito ao controle do seu passado digital. Mas quem mais teria esse direito ao esquecimento garantido?
Xuxa ainda hoje tenta retirar de circulação o filme Amor Estranho Amor, filmado em 1982. O "pornô da Xuxa", como ficou conhecido, passa-se na década de 1930 e é uma trama de ficção. A fita VHS de outrora hoje é vista em vários links no Youtube que mantêm o filme vivo.
Daniella Cicarelli que o diga. Um vídeo de paparazzo em 2006 a capturou em praia pública protagonizando cenas de sexo embaixo dágua. O vídeo levou a uma batalha judicial que chegou a retirar o próprio Youtube do ar (decisão hoje revertida). Mas passados anos o vídeo tropical ainda está aí pelas redes, presente.
E o que falar das fotos íntimas de Carolina Dieckmann vazadas? Dieckmann é um caso emblemático. Motivado pela existência de crime comprovado (tentativa de extorsão, por exemplo), a polícia investigou o caso identificando responsáveis, e o Congresso na onda passou a "Lei Carolina Dieckmann" (que tipificou o crime ocorrido). Mas as fotos de Dieckmann ainda estão por ai, como estarão as fotos da vencedora do Oscar Jennifer Lawrence que acabaram de ser vazadas no 4chan.
Vai demorar pouco, mas muito pouco mesmo, para que todos (mas especialmente os mais jovens) tenham seu dia de Dieckmann e Lawrence. Aplicativos como WhatsApp e Snapchat permitem uma circulação cada vez mais rápida de pornografia de vingança e fotos íntimas, e falhas nos serviços de nuvem como iCloud e Google Drive vão um dia vazar fotos com a rapidez que senhas de internet e números de cartões de crédito vazam hoje.
No futuro, ninguém vai esquecer da nossa foto selfie no banheiro, voltando da academia, registrando com pouca roupa nosso desempenho aeróbico, vazada de alguma forma por aí. E então, será que adiantará culpar intermediários como Google e Facebook, ou recorrer à polícia para procurar culpados?
Talvez você esteja se perguntando o que a torcedora do Grêmio tem a ver com memórias na internet relacionadas a sexo. Alguns vão dizer que autores e vítimas de crimes não se devem comparar. Mas quando o tema é direito ao esquecimento, as fronteiras se aproximam.
O Marco Civil acertou em definir direitos civis do cidadão na cultura digital. Antes de criminalizar comportamentos, precisávamos definir direitos. Mas ainda não discutimos o direito ao esquecimento no país, e o tema carece de debate.
Temos ou não temos o direito de controlar nosso passado virtual?
A torcedora do Grêmio, se condenada, merece punição. Racismo é crime. Mas e quando ela quitar sua dívida e for uma ex-racista? Quem não se lembra do casal de São Paulo condenado pela mídia e absolvido posteriormente pela justiça (não sem antes ver sua creche e suas vidas arruinadas)? Merece a torcedora (até mesmo ela) ser julgada eternamente no Facebook e no Google pelos seus atos, mesmo se tiver pago por eles? Seria isso um equivalente à prisão perpétua?
O direito ao esquecimento, mais cedo ou mais tarde, será necessário a todos. Se racismo é crime, que se pague por ele. Mas é nessa parte da memória eterna da internet que temos uma torcedora praticando atos criminosos que se equipara, momentaneamente, a pessoas idôneas como Xuxa, Cicarelli, Dieckmann, Lawrence, a eu e a você, no fantasma de sermos eternamente lembrados, nunca esquecidos, na rede.
P.S.: A propósito, o autor deste texto nunca teve (até agora) uma foto íntima vazada na internet. Nasceu em Porto Alegre, foi gremista, e apoia a criminalização do racismo.