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Professora da FGV Direito SP e coordenadora do Grupo de Ensino e Pesquisa em Inovação (GEPI) na mesma instituição.
O que o Secret e a polêmica em torno do direito ao esquecimento têm em comum?
A internet traz um potencial praticamente infinito para o surgimento de novos modelos de negócios, novas formas de comunicação e socialização, novos meios de gestão do conhecimento. Quando o direito, em seu afã de regulação, desconhece as dinâmicas de funcionamento dos espaços que busca normatizar, o resultado é ruim. No ambiente digital, recentes episódios mostram que o resultado pode ser catastrófico.
Este ensaio argumenta, por meio de dois exemplos concretos, que os operadores do direito têm, de forma geral, encontrado dificuldades para compreender e refletir qualificadamente sobre o ambiente digital. De projetos de lei a decisões da justiça, é patente o desejo de solucionar questões polêmicas sem o devido ponderamento das consequências das mesmas sobre o funcionamento e arquitetura da internet como um todo.
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O fato é que tomadas de decisões regulatórias ruins impactam profundamente a forma como utilizamos a rede. Isto porque a defesa de valores como liberdade de expressão e acesso à informação são cruciais para a definição de filtros, para a liberdade de acesso a determinados serviços e espaços virtuais, para o livre opinar e debater - coisas que fazemos cada vez menos no mundo off-line e cada vez mais no mundo online, por meio das telas de nossos tablets, smartphones e computadores.
Não se trata aqui, que fique claro, de defender valores absolutos (e.g. liberdade de expressão acima de tudo e de todos!), mas sim de chamar atenção para a necessária ponderação de valores como esses - que recorrentemente aparecem em segundo (ou nenhum) plano - quando surge a possibilidade de regulação, seja por meio de sentença, legislação ou política pública.
Há duas semanas, a justiça do Espírito Santo determinou a remoção do aplicativo Secret das lojas virtuais da Apple e Google. O que aplicativos como o Secret vendem ao usuário é o anonimato. Em seu site, a empresa anuncia desejar que "a comunidade [de usuários do Secret] seja um lugar seguro e libertador para todos se expressarem verdadeiramente".
Na maioria das escola de ensino fundamental e médio, entretanto, o aplicativo passou a ser o espaço preferido para a prática de bullying. Iludidos (sim, porque os termos e condições de uso da empresa deixam claro que os dados dos usuários podem ser entregues a autoridades judiciais) pela promessa do anonimato, grupos de alunos passaram a usar o espaço para ofender, difamar e caluniar colegas que, por sua vez, encontram dificuldades de defesa e denúncia vez que desconhecem a identidade do ofensor.
A Ação Civil Pública que motivou a decisão da justiça capixaba é fundada na Constituição Federal brasileira, que veda o anonimato. De fato, a legislação brasileira assegura o direito de resposta e o direito de defesa. Se a empresa desenvolvedora do Secret existisse formalmente no Brasil (por meio de uma filial, por exemplo), bastaria um pedido à justiça brasileira para que essas informações fossem produzidas. Mas neste caso concreto a empresa aqui não existe, apesar de ter muitos usuários brasileiros. E esse é um cenário que a internet torna possível e uma dinâmica de negócios que só tende a crescer.
Ao não atacar o problema de jurisdição, a justiça capixaba optou pelo caminho mais curto, mas também mais radical: proíbe a venda e, consequentemente, o uso do aplicativo no país. O precedente que a decisão cria é muito ruim: estariam todos que circulam pela Deep Web por meio de navegadores que - como o Tor - garantem o anonimato, em situação de ilegalidade? Se vivêssemos nos dias de hoje uma ditadura militar, não seria o anonimato uma ferramenta absolutamente relevante?
Passemos ao segundo exemplo. Recentemente o Tribunal de Justiça da União Europeia determinou que o espanhol Mario Costeja González tinha o direito de exigir que o Google "esquecesse" certas informações a seu respeito (no caso, o fato de, na década de 1980, ele ter tido um imóvel penhorado por dívidas). A Corte considerou ser aplicável a diretiva 95/46/EC de proteção de dados pessoais, definindo a responsabilidade de plataformas de busca na internet por conteúdos que configurem violação à privacidade de usuários.
Na prática, essa decisão fez com que grandes empresas como Google e Microsoft passassem a disponibilizar - para cidadãos europeus - formulários de pedidos de remoção de conteúdo. Apenas no primeiro dia, foram mais de 12 mil pedidos enviados ao Google, afetando dezenas de milhares de links, desde notícias de jornal, passando por blogs, sites e páginas em redes sociais, até verbetes da Wikipédia. Note-se que não existe, para estes pedidos, um juiz analisando o caso concreto e verificando, por exemplo, se a informação em questão fere, de fato, a privacidade do indivíduo, se deve o direito à informação prevalecer sobre o direito ao esquecimento, etc. As consequências para a memória Europeia e para a liberdade de expressão e informação são, no mínimo, sombrias.
Estapafurdiamente, um projeto de lei (PL n. 7881/2014) neste sentido foi recentemente proposto na Câmara dos Deputados brasileira. Em sua vasta complexidade (são apenas dois artigos), o projeto prevê a obrigatoriedade "de remoção de links dos mecanismos de busca da internet que façam referência a dados irrelevantes ou defasados, por iniciativa de qualquer cidadão ou a pedido da pessoa envolvida". Simples assim. Imagine Susane Von Richthofen apagando da memória virtual brasileira todas as notícias relacionadas ao crime que cometeu. Porque, convenhamos, daqui a alguns anos essa informação estará "defasada".
O que o Secret e o direito ao esquecimento têm em comum? Eles demonstram a inabilidade do direito em navegar pelo ambiente digital. Este é um debate que precisa ser melhor construído no país, sob pena de amanhã esta notícia e as plataformas pelas quais você navega na internet não estarem mais disponíveis a você, leitor.