
A QUESTÃO POLÍTICA
Na semana passada, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva comparou os ataques à candidata petista Dilma Rousseff às agressões nazistas na II Guerra Mundial. Sete dias antes, o tucano Aécio Neves também usou o horror nazista como munição:disse que o marqueteiro do PT, João Santana, agia como o ministro da Propaganda da Alemanha de Hitler, Joseph Goebbels.
Quando candidatos a liderar 200 milhões de pessoas resolvem usar munição tão ignóbil quanto o nazismo, parece ser hora de parar para pensar. Desde a disputa entre Lula e Fernando Collor, em 1989, o Brasil não chega tão dividido a um domingo de eleição. Nas últimas semanas, a tensão comum a correligionários dos candidatos derramou-se pelos eleitores - dos papos de escritório aos grupos de whatsapp e murais de Facebook. Dilmistas e aecistas parecem habitar dois mundos opostos, inconciliáveis.
Os números do primeiro turno turbinam uma primeira impressão: de que essa cisão é consequência da distribuição maior de renda dos últimos 12 anos, que trouxe a milhões de brasileiros a chance do consumo. De que há um Brasil do Bolsa Família se contrapondo ao que hoje tem dificuldades para contratar uma empregada doméstica. Para o cientista político francês Stephane Monclaire, da Universidade de Sorbonne, a cada pleito o corpo de eleitores é mais repartido: camadas populares vão de PT, elite e classe média tradicional, com o PSDB. O principal fator do racha profundo deste ano é a incapacidade de um lado entender as prioridades do outro. O brasilianista explica: quem saiu da pobreza tem motivos para crer na melhora e está satisfeito com a condução do país. Quem não foi beneficiado diretamente com esse processo, quer mudanças. E ambos assumem posições excludentes:
- São duas partes da população que não se entendem. Não compreendem a irritação uma da outra - diz Monclaire.
É até curioso - considera Marcos Troyjo, diretor do BRICLab e professor na Universidade de Columbia - que haja animosidade por razões econômicas. Para ele, reduzir conquistas sociais está fora de questão, tanto com Dilma quanto com Aécio. Além disso, a ênfase dos candidatos em macroeconomia - política de juros e combate à inflação - deixa de lado a verdadeira corda no pescoço do Brasil, a falta de competitividade.
- Há, nos programas, uma cesta de generalidades, que não discute o custo Brasil, a falta de investimento em educação, a pouca participação das exportações no PIB.
Parece que mexer no ministério da Fazenda é tudo o que precisa ser feito - comenta.
Leonardo Avritzer, presidente da Associação Brasileira de Ciência Política e professor da Universidade Federal de Minas Gerais, vê a polarização como conjuntural, e não estrutural. O aumento da oposição ao PT vem do fato de que a classe média passou a ganhar menos do que nos períodos de economia mais pujante.
- Foi a expansão econômica que deu aos petistas um apoio maior do que seu eleitorado cativo. Se a economia melhorar, essa cisão diminui - avalia.
Será apenas isso? A questão então é dinheiro? Nem sempre, ao que parece. Puxando o assunto com o professor de Ciência Política da Universidade de Brasília Leonardo Barreto, ele lembrou outra transformação recente: a busca pela redução de desigualdades também raciais, de gênero, ligadas às minorias. Quando uma minoria se impõe e lembra um histórico de opressão, as maiorias costumam se sentir atingidas.
- É como uma tia que eu tenho que foi para o Facebook reclamar: "Não aguento mais ser chamada de opressora só porque sou branca, católica, bem de vida". Ela não percebe que a criação de um novo direito não tira o espaço do seu, e sugere a interpretação de que está sendo criada uma divisão racial ou social que não existia - exemplifica.
É o momento em que a sensação de que brasileiros não dão muita bola para ideologias se mostra falsa, argumenta Barreto. Ainda que ideologias sejam desidratadas pelos candidatos à presidência, que fogem de temas espinhosos e debates complicados. Afinal, posicionar-se em uma polêmica significa desagradar alguém - e, numa eleição desta voltagem, ninguém pode ignorar nenhum votinho.
- A Marina Silva sofreu com isso, porque não conseguia se posicionar em pautas como aborto e casamento gay. Mas todos agem assim, tentam esconder ao máximo posições que tenham de se comprometer - diz Barreto.
Nesse caldo de mudança social e turbulência econômica, qual o espaço do ingrediente político? A "metade mais um pouco" que vencer a eleição terá problemas para governar um país profundamente cindido? Para o brasilianista Gaspard Estrada, cientista político do Observatório Político da América Latina e do Caribe da universidade francesa SciencesPo, é pouco provável que haja consequências além do âmbito eleitoral. Segundo ele, segundos turnos de eleição normalmente têm ânimos acirrados - e isso não significa necessariamente um ódio que dure além da campanha. Com a necessidade de montar grandes coalizões para governar, o sistema político brasileiro impediria rancor demasiado para a maior parte dos partidos.
A agressividade de Aécio e Dilma se explica, para Estrada, pelo fato de que a maioria dos eleitores já definiu seu voto. A esta altura, é mais fácil buscar um indeciso mostrando que o adversário não deve governar o país, em vez de cativá-lo pelas propostas:
- A estratégia é ampliar a rejeição: se não foi possível obter o voto até agora, resta evitar que ele vá para o concorrente - avalia Estrada.
A FALÊNCIA DO DEBATE
Perto do que surge nos smartphones e redes sociais, citar Hitler na campanha é coisa de criança. Montagens de fotos, vídeos editados para alteração do sentido, textos que candidatos nunca escreveram circulam todos os dias. Brigas de amigos, familiares que deram um tempo ou não tocam mais no assunto eleição: todos já ouvimos alguma história assim nas últimas semanas.
Mas democracia é debate, então qual é o problema? É que, na maioria dos casos, é mais gritaria do que discussão. Algo que, além de desconfortável, põe em dúvida um dos traços mais famosos dos brasileiros: a afabilidade.
- Esse é um mito que alimentamos sem qualquer base na realidade. Somos cordiais só quando estamos lidando com alguém igual a nós. Ante qualquer discordância, essa polidez vai para o espaço. É como no futebol: se você usa o mesmo uniforme que eu, pode tudo. Senão, quero te trucidar - diz o escritor Luiz Ruffato, que tratou do problema em um artigo chamado A Tirania do Pensamento Único.
No texto, publicado na versão brasileira do jornal El País, ele diz que petistas e antipetistas "manejam seus tacapes com o intuito de enfiar na cabeça dos adversários/inimigos suas próprias ideias". Os ataques descontrolados de Aécio e Dilma nos debates fazem eco à sociedade - o nível estabelecido é o da intolerância e do ódio, considera Ruffato. Que não só rompeu amizades, mas mostrou a imaturidade para o diálogo.
- Debater é ouvir o que o adversário está dizendo e refletir a respeito, não querer só fazer com que o outro engula sua opinião. Por mais que desempenhemos no dia a dia um papel de homens e mulheres cordiais, somos na essência autoritários - opina.
Se um brasileiro acha paradoxal, imagine quem vê de fora, caso do francês Stephane Monclaire. Para ele, no debate do SBT, quando Aécio e Dilma se atacaram sem piedade - e, ao final, a presidente teve uma queda de pressão - um limite foi ultrapassado.
- No Brasil da afabilidade, onde as pessoas se cumprimentam, se tocam, se beijam, o debate foi tudo, menos carinhoso - comenta.
Psicanalista e mestre em Filosofia pela USP, Pedro de Santi faz um parêntese nessa conversa. Ele não acha que ser cordial e brigar sejam coisas excludentes. Ele lembra que o homem cordial, no conceito de Sergio Buarque de Hollanda, não é necessariamente doce e educado, mas alguém que age pelo coração.
- O homem cordial personaliza as relações e as discussões, e isto combina bem com a transformação da diferença de ideias em "ofensas" - afirma.
Fechado o parêntese, que também alerta para a importância que damos a nossos próprios estereótipos, o fato de as brigas políticas terem saído do âmbito da militância também mostra a divisão social identificada por Monclaire vários parágrafos atrás: o Brasil avançou na integração econômica, mas ainda está longe de ser um país coeso, com o respeito à convivência com o outro.
A essa soma de fatores, vem um que já está batido, mas é fundamental: as redes sociais. São nelas que se proliferam as piores ofensas, a insinuação mais irresponsável, a decepção mais dolorida com um amigo que se revela um idiota ao não pensar como você.
- É claro que não há esse ressentimento com todo mundo, mas as redes são uma mostra bem fiel do que acontece na vida real, onde ninguém quer se escutar - diz Luiz Ruffato.
Monclaire, porém, alerta para o peso que esses embates têm na vida real. Para ele, o clube do ódio virtual e as eventuais brigas de militantes do lado de fora das redes de televisão nos debates não são um resumo do país.
- A mídia só mostra o que é diferente, espetacular. Ninguém vai filmar pessoas conversando normalmente sobre política em um escritório, ou num boteco. Seria interessante ver as conversas em restaurantes, ver como é a conversa sobre a decisão do voto - alerta.
Também achei que seria interessante, e resolvi passar toda a quinta-feira prestando atenção em diálogos de pessoas comuns. Fui almoçar em um restaurante cheio na região dos fóruns, dei uma volta por um shopping, fui tomar um café no Centro de Porto Alegre, depois outro numa padaria, acabei no super. Em todos os lugares, parei como quem não quer nada ao lado de quem batia papo, para escutar. Não flagrei uma briga sequer. Na Praça da Alfândega, até achei três senhores discutindo. Cheguei perto, esperançoso em ver um round de Dilma x Aécio, mas a briga era sobre a zaga do Inter.
Então as confusões que pipocam no meu Facebook não são mesmo a ponta visível de algo maior? Sei não. Voltando para o jornal, abri o whatsapp e estava tudo lá: da colega de faculdade fazendo campanha pela Dilma no meio de qualquer conversa até os amigos de colégio que me inundaram com montagens pedindo votos para Aécio. No Facebook, um amigo fazia a contagem de contatos bloqueados por "idiotice eleitoral". É a liberdade de não estar frente a frente com o debatedor causando excessos, concordam Monclaire e Ruffato.
Resta saber o que ficará disso tudo na segunda-feira. Teremos aprendido um pouco sobre como discutir sem brigar? Ou sairemos deste 26 de outubro como um país separado por clichês agressivos - nordestinos versus sulistas, assistencialistas contra neoliberais, populistas ante intelectualoides, pobres x ricos?
- É um cenário forte, mas o Brasil já esteve dividido outras vezes. As diferenças existem, mas acho que ficarão restritas à arena eleitoral. As pessoas não vão sair se pegando no meio da rua depois da eleição - diz o cientista político Leonardo Barreto.
Que também lembra: tudo deve voltar daqui a dois anos, quando tem eleição de novo.