
Em 44 depoimentos, uma das faces mais cruéis e menos conhecidas da ditadura brasileira ganha agora nova dimensão. Produzido pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, o livro Infância Roubada descreve torturas e abusos cometidos contra crianças e adolescentes. Filhos de presos políticos que hoje são adultos na faixa dos 40 a 50 anos contam na obra lembranças de abandono, da prisão e do exílio. E os traumas que o presente não apagou.
- Se dizia que a ditadura brasileira não mexeu com as crianças, que era "ditabranda". O livro comprova que a ditadura não deixou barato. São histórias impressionantes. É o relato mais sincero já produzido sobre o assunto - diz o presidente da comissão, Adriano Diogo.
Entre as histórias relatadas, está a do gaúcho Ivan Seixas, que foi torturado aos 16 anos, enquanto ouvia gritos de seu pai sendo assassinado por militares. E a de Carlos Alexandre Azevedo, preso e agredido por militares quando bebê, que se suicidou no ano passado
Leia, abaixo, um trecho da história de Carlos Alexandre contada por sua mãe, a pedagoga aposentada Darcy Andozia. Ela e seu marido na época, Dermi, eram ligados aos padres dominicanos e ao então cardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns.Trabalhavam na retaguarda auxiliando, por exemplo, a saída de militantes para o exílio a fim de garantir sua sobrevivência. Ela foi presa no dia 15 de janeiro de 1974 enquanto buscava ajuda para seu marido que havia sido preso no dia anterior e ela temia por sua vida. Seu filho Carlos Alexandre Azevedo, foi levado de sua casa, em São Bernardo do Campo, com 1 ano e sete meses de idade, com sua babá, Joana.
"Ele lutou muito para poder conseguir se inserir na sociedade, mas não conseguiu"
"Numa manhã de fevereiro de 1974, meu filho Cacá, de um ano e sete meses, foi preso em nossa casa, que ficava no bairro do Brooklin, em São Paulo. Eu tinha saído para ir à procura de Dom Paulo Evaristo Arns, com quem tínha­mos um relacionamento direto, para avisar que o pai de Cacá [Dermi Azevedo] certamente ti­nha sido preso na noite ou no dia anterior. Já tínhamos recebido a notícia de que ele teria morrido. Então, para tentar evitar que de fato isso acontecesse, porque sabíamos que não se matava imediatamente e ele só tinha sumido no dia anterior, eu fui atrás de Dom Paulo.
Nem voltei para casa, porque, quando fui ao escritório de Maria Nilde [Mascellani], por vol­ta das seis e meia da tarde, fui presa.
(...) Só fui encontrar meu filho de madrugada, por volta de uma, duas horas, no DOPS, com a babá, Joana, que cuidava dele. Na manhã ante­rior, os policiais estiveram em minha casa para me buscar.
Como eu não chegava, levaram a criança e a babá para o DOPS. Ambos ficaram sem se alimentar, sem água, sem nada, por um bom tempo. Para minha surpresa, vi que na boca do meu filho havia um corte lateral. A meni­na me contou que [os policiais que] estavam em casa falaram: "Cadê a sua mãe? Sua mãe não está aqui nem pra te alimentar". O menino começou a chorar de fome. Então os policiais deram um tapa muito forte que cortou a boca da criança.
Meu filho acabou me salvando da tortura. Fui levada para a sala de tortura, onde havia uma máquina de choque elétrico e comecei a ser in­terrogada pelo delegado Sérgio Fleury. Aí che­gou um policial perguntando o que iriam fazer com o tal menino que estava preso no DOPS desde aquela tarde.
Por conta disso, não sofri tortura física na­quela noite. Permitiram-me levar o menino para a casa dos meus pais em São Bernardo. Fomos durante a madrugada. Fui alertada pelo Fleury de que, se eu abrisse a boca para gri­tar ou falar qualquer coisa quando chegasse lá, meu filho voltaria comigo e não iriam levá-lo outra vez a lugar nenhum.
Quando chegamos a São Bernardo, Joana desceu com Cacá no colo, dormindo. Eu então perguntei para o motorista se era possível es­perar até que alguém da minha família acor­dasse. Vi quando minha mãe abriu a janela e Joana entrou com meu filho. O carro deu uma arrancada imensa e nós voltamos para o DOPS.
(...) Na cela tinha um banco de cimento e um vaso sanitário. Era preciso ficar atenta escutando o barulho da água no vaso, porque era dali que se pegava água para beber, com um copo, quando eles davam a descarga, uma vez por dia. Certa vez me senti mal porque não conseguia comer a comida, que vinha completamente estragada. Ninguém conseguia.(...)
Nós sofremos muita discriminação quando saímos da prisão. (...) Meu filho sofria na escola, era chamado de terrorista, mau elemento, os meninos batiam nele. O todo tempo ele reclamava de ser atin­gido e tinha vergonha disso, de ouvir dizer que nós éramos marginais (...) Isso ocorreu durante muitos anos. Ele acabou se fechando e os médicos di­ziam que o trauma tinha sido muito grande, que a partir daí teria esse problema de saúde. (...)
Em 2011, quando o Cacá recebeu a indeniza­ção do Estado, ele falou claramente de como se sentia, que não se adaptava. Acredito que ele lutou muito para poder conseguir se inse­rir nessa sociedade, mas não conseguiu. (...) Cacá foi embora com 40 anos, ia fazer 41. Foi surpresa para todos (...) ele se suicidou de madrugada. In­clusive mandou um e-mail para os amigos se despedindo, deixou um bilhete muito bonito para mim, em que me pede para eu não esque­cer e nem descuidar dos outros irmãos.