Documentos que comprovam a prisão de Rubens Paiva pelos militares
Foto: Ronaldo Bernardi
Restos de João Goulart são exumados em São Borja
Foto: Diego Vara
Paulo Malhães depõe na Comissão Nacional da Verdade (CNV) em março de 2014
Foto: Marcelo Oliveira

Os brasileiros que saíram às ruas para pedir a volta do regime militar têm uma oportunidade inédita de conhecer as minúcias do que querem reviver.
Depois de ouvir 1.117 depoimentos, analisar arquivos e visitar centros de torturas, mortes e desaparecimentos no período da ditadura, a Comissão Nacional da Verdade vai divulgar no dia 10 de dezembro seu relatório final, em três tomos que revelam contornos inéditos sobre um dos capítulos mais sombrios da nossa história.
O texto vai detalhar os perfis e as violações cometidas contra 421 mortos e desaparecidos - um número maior do que o conhecido até então, quando se contabilizavam 362 vítimas. E, numa das medidas mais polêmicas, vai propor a responsabilização jurídica dos torturadores.
O grande enigma é como esta recomendação será levada adiante - se é que será - já que pode implicar a revisão da Lei da Anistia. De acordo com o presidente da Comissão Nacional da Verdade, o jurista Pedro Dallari, caberá ao Judiciário, ao Executivo e ao Legislativo tomarem as providências necessárias para garantir a responsabilização. Como os mandatos dos conselheiros da comissão se extinguem no dia 16 de dezembro, será proposta a criação de um órgão que dê continuidade às ações, acompanhando a execução das recomendações.
- Não vamos entrar no detalhe, se tem que revogar a lei da Anistia ou não, porque há uma discussão jurídica sobre isso. Há juristas que acham que nem precisa mexer na lei. Para nós, o relevante é que haja responsabilidade jurídica aos que deram causa a essas graves violações de Direitos Humanos, para que não haja impunidade - resume Dallari.
Além de apresentar uma relação de responsáveis e o detalhamento de sua participação em cada caso, o documento final descreverá a estrutura das cadeiras de comando e do modus operandi do sistema repressivo. Na avaliação de Dallari, a maior contribuição será desmistificar a ideia de que os excessos foram casos isolados ou eventuais. Extrapolando o conceito de "porões da ditadura", comprovou-se que os métodos adversos estavam incrustados em toda a burocracia do Estado.
- Ficou evidente pela investigação da comissão que houve graves violações aos direitos humanos, que não decorreram da ação isolada de alguns indivíduos, foram produzidas por orientação da cúpula do regime militar de maneira sistemática, persistente. O relatório é um compêndio de crueldade. Em alguns momentos é até difícil de ler, tal a crueza e a rusticidade da conduta de servidores públicos, pagos pelo erário. É fundamental que as Forças Armadas reconheçam seu protagonismo, até em benefício da reconciliação nacional - defende.
A julgar pela disposição das Forças Armadas, esse reconhecimento não deve acontecer tão cedo. Os comandos militares sequer abriram seus arquivos, alegando que os documentos haviam sido destruídos - hipótese desacreditada por quem conhece a rígida organização dos batalhões. Diante de um pedido feito em fevereiro deste ano pela Comissão Nacional da Verdade, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica até abriram sindicâncias para apurar violações aos direitos humanos em sete unidades militares descritas por vítimas como centros de torturas, mas em junho apresentaram conclusões nulas: negaram ter descoberto qualquer "desvio de finalidade" em suas instalações no período militar.
- Enquanto as Forças Armadas não reconhecerem o que aconteceu, mesmo diante de evidências muito robustas, pairará sempre aquela dúvida sobre o efetivo compromisso democrático delas - preocupa-se Dallari.
A resistência dos militares em colaborar com as investigações é apontada como um dos maiores entraves para a localização de corpos de desaparecidos políticos - cerca de 200 deles permanecem com destino ignorado, dos quais 70 na região do Araguaia. Foi por não ter investigado e punido os responsáveis pelas mortes e desaparecimentos ocorridos na Guerrilha do Araguaia, aliás, que o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2010. Na avaliação da Corte, as disposições da lei da Anistia não poderiam impedir a investigação e a sanção de graves violações de direitos humanos.
- O Direito Internacional não admite anistia para crimes de lesa-humanidade. Há vasta jurisprudência sobre isso. Não há o que discutir. Nem é necessário fazer uma nova lei, é só fazer uma aplicação adequada da lei da Anistia, que não alcança os agentes de Estado, porque um agente de Estado jamais poderia cometer um crime de Estado - argumenta o presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Jair Krischke.
Apesar dos embates jurídico e militar, não foi apenas a pressão externa que atravancou o trabalho da comissão. Segundo o historiador Enrique Padrós, professor do programa de Pós-Graduaçao da UFRGS e pesquisador das ditaduras no Conesul, sua ação esteve enredada em brigas internas, falta de entendimento sobre qual deveria ser o horizonte e a metodologia dos trabalhos, demora em resolver estratégias.
- Os ganhos são inferiores ao que se esperava, poderiam ter feito muito mais. Mas, apesar disso tudo, o trabalho ajudou a colocar o debate sobre a ditadura na mídia e contribuiu para que se possa conhecer algumas novidades, consolidar interpretações. Até dois anos atrás, o Brasil era conhecido como o país do silêncio. Hoje temos um quadro mais preciso da história da ditadura no Brasil - avalia.
A demora em quebrar esse silêncio é outro ponto que torna mais complexa a tarefa de remontar o quebra-cabeça das violações. Para Padrós, o Brasil estaria "no mínimo 30 anos atrasado" em relação aos vizinhos Uruguai e Argentina.
- Na Argentina, houve centenas de militares julgados e punidos, alguns condenados à prisão perpétua. No Uruguai, os ditadores que estão vivos estão presos. O Brasil é o único país em que nenhum torturador foi condenado - compara.
As interpretações são diversas. Para Nadine Borges, integrante da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, a dilatação do tempo seria um ponto a favor. Na sua avaliação, o Brasil hoje está mais amadurecido para fazer essa discussão sobre seu passado.
- Não sou daquelas que acha que antes seria melhor. Não teria clima, condições políticas para isso - opina.
Nadine foi quem ouviu as primeiras confissões do coronel Paulo Malhães, que assumiu torturas e mortes, e quem coordenou a exumação do corpo do presidente João Goulart. Os dois casos são exemplos de conquistas parciais das comissões da verdade: a exumação do corpo de Jango, ainda não concluída, representa, pela primeira vez, um avanço na investigação da hipótese de assassinato do ex-presidente. Malhães, que concedeu quase 30 horas de entrevistas e deu detalhes sarcásticos do horror - como quebrar a arcada dentária e remover as digitais dos corpos para não permitir a identificação -, morreu durante um assalto um mês depois.
- Nunca se pode ter certeza se um torturador está falando a verdade. Só teríamos como comprovar se tivéssemos acesso aos documentos - lamenta Nadine.
Mesmo com todas as limitações do trabalho, pesquisadores são unânimes em reconhecer que as investigações se inserem como um marco na luta pelos direitos humanos e pela recuperação da memória histórica. Não só pelo passado, mas também pelo presente. Na avaliação do professor da faculdade de Direito da USP e presidente da Associação Nacional dos Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação, Guilherme de Almeida, a violência policial cotidiana, que ainda provoca mortes e desaparecidos ("Onde está o Amarildo?"), é uma prova desta herança de torturas impunes.
- Para virar a página tem que ler a página. O grau de violência letal do Estado brasileiro é algo grave que tem que ser enxergado e debatido. A violência do Estado não foi debelada - diz.
No ano em que o Golpe Militar completa 50 anos, a existência de manifestações pedindo a volta da ditadura também serve como alerta de que as lições do passado não foram bem compreendidas.
- Isso só pode acontecer por falta de memória. Nós também temos responsabilidade sobre isso, porque não soubemos contar a história aos mais jovens - reflete o presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Jair Krischke.
Com o relatório da Comissão da Verdade, há uma nova chance.
ENTRE LUZES E SOMBRAS
O RELATÓRIO
> O relatório apresentará 421 mortos e desaparecidos - 59 a mais do que a Comissão de Mortos e Desaparecidos do governo federal havia compilado para o livro Direito à Memória e à Verdade, publicado em 2007.
> Além do novo número oficial de mortos, o relatório apresentará ainda um estudo sobre 8 mil indígenas e camponeses que foram vitimados direta ou indiretamente pela ditadura.
> O texto final será composto por três tomos. O volume principal trará as conclusões do relatório e um histórico das violações dos direitos humanos. No segundo, estarão 10 textos temáticos, assinados por membros da CNV e pesquisadores. No último, a biografia de 421 mortos e desaparecidos, com os detalhes de cada caso.
> Em dois anos, a comissão entrevistou 1.117 pessoas, sendo 132 agentes públicos, percorreu 20 Estados e realizou 80 audiências públicas.

Caso Rubens Paiva
Documentos inéditos, obtidos em Porto Alegre após a morte do ex-comandante do DOI-Codi do Rio Júlio Miguel Molinas Dias, comprovaram o registro da entrada do ex-deputado federal por São Paulo Rubens Paiva na prisão, em 1971. Quarenta e três anos depois da morte de Rubens Paiva, a Justiça Federal aceitou a denúncia feita pelo Ministério Público contra cinco militares acusados do crime. O processo foi suspenso por cinco meses por um habeas corpus, mas a segunda turma especializada do Tribunal Regional Federal do Rio decidiu, em setembro deste ano, retomar a ação. Foi a primeira vez que a Justiça brasileira reconheceu crimes de militares durante a ditadura como crimes contra a humanidade. Em seu relatório preliminar, a CNV diz que o general José Antônio Nogueira Belham, que comandou o DOI, é a pessoa mais indicada para esclarecer o destino final do corpo de Rubens Paiva.

Exumação do corpo de Jango
A tese de que o ex-presidente João Goulart foi assassinado ganhou força quando um ex-espião do governo militar uruguaio, Mário Neira Barreiro, contou que colegas teriam colocado um produto causador de hipertensão em meio ao frasco de vasodilatadores que Jango tomava para prevenir infarto. O corpo de Jango foi exumado, mas o resultado ainda não foi concluído e deve ficar de fora do relatório da CNV. Segundo a Secretaria de Direitos Humanos, os resultados das análises serão divulgados até o final do ano. A secretaria nega que tenha havido atraso por falta de pagamento, como chegou a ser veiculado na mídia.

Confissões da tortura
Apesar da negativa oficial das Forças Armadas sobre torturas, militares admitiram a prática em seus depoimentos à Comissão da Verdade. O de maior repercussão foi o do coronel reformado Paulo Malhães, que admitiu envolvimento em torturas, mortes e desaparecimentos. Também confirmou ter recebido ordens para ocultar o corpo do ex-deputado Rubens Paiva. Disponibilizado pela CNV ao YouTube, o depoimento de Paulo Malhães teve mais de 63 mil acessos.
Malhães foi morto um mês depois, levantando suspeitas de retaliação. A polícia concluiu que a causa da morte foi infarto após um assalto.
Resistência nos quartéis
A negativa dos militares em reconhecer a prática de torturas e de acesso à documentação é um dos entraves no avanço da investigação e na localização dos corpos. Em seu depoimento, o coronel Paulo Malhães mencionou a realização de uma "Operação Limpeza", em que os corpos eram ensacados e jogados no rio. O Brasil foi condenado pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos pelos crimes no Araguaia e obrigado a manter a busca pelos corpos. Uma força-tarefa ligada à Secretaria dos Direitos Humanos organiza visitas periódicas à região, sem progressos significativos.
Desaparecidos
> A comissão identificou apenas um desaparecido: o de Epaminondas Gomes de Oliveira, sumido desde 1971. Ele morreu em agosto de 1971 após prisão e tortura por espancamento e choques elétricos, "na Polícia da Aeronáutica e/ou no Pelotão de Investigações Criminais (PIC), na capital federal". Este é o 32º corpo de desaparecido político identificado desde o início da redemocratização.
> Cerca de 200 corpos permanecem desaparecidos - sendo 70 na Guerrilha do Araguaia.