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Professora de Relações Internacionais na UFRGS, a historiadora Analúcia Danilevicz Pereira vem acompanhando de perto as mudanças realizadas em Cuba desde a ascensão de Raúl Castro ao comando na ilha. Nesta entrevista, ela analisa as consequências da retomada de laços diplomáticos entre EUA e Cuba e discute o que deve mudar, para ambos, com o anúncio feito esta semana. Para ela, o acordo muda a imagem dos EUA na América Latina, e ao mesmo tempo legitima a participação de Cuba nos fóruns que debatem as grandes questões do continente.
Fernando Morais chegou a afirmar em entrevista a Zero Hora que essa reaproximação era o "fim da Guerra Fria". A senhora concorda?
Eu não faria uma leitura nesses termos, mas há um processo que tem de ser considerado. As grandes tendências que vigoraram ao longo do século 19, o predomínio britânico, a realidade da política imperial, tiveram um período de desgaste e depois de aniquilação completa no final da I Guerra Mundial. É importante que exista um tempo histórico para que as transições entre as ordens ocorram. Eu diria que estamos vivendo hoje um período semelhante. Houve um período em que a ordem do sistema mundial estava regulada pelos EUA, passamos por um tempo de crise, de desgaste, e agora estamos fazendo a transição para uma nova fase. As grandes tendências do século 20 estão em crise e provavelmente transitando para uma ordem que não sabemos qual é.
Por que o acordo ocorre agora?
Da parte dos EUA, o país vem enfrentando um longo período de desgaste com as crises iniciadas já em 2006, depois a de 2008, que criou uma série de contenciosos no plano doméstico e tornou bastante difícil a ação internacional de Obama. É um período em que os EUA entenderam, de forma pragmática, e até tiveram uma boa percepção, de que essa aproximação com Cuba transforma de alguma maneira a imagem norte-americana em um espaço que é fundamental para os Estados Unidos, o regional. Curiosamente, o isolamento que o bloqueio tentou efetuar com relação a Cuba acabou se transformando em um relativo isolamento norte-americano, porque todas as grandes cúpulas, a partir da ascensão de governos de esquerda na América Latina, acabaram trazendo outros protagonistas no conjunto regional. Os Estados Unidos chegaram à conclusão de que precisam reverter esse quadro. Do lado cubano, a transição de Fidel para Raúl foi muito bem pensada, e o Raúl assumiu o governo com a missão de reverter a realidade regional e internacional de Cuba. As chamadas reformas de Raúl não são agressivas no sentido de modificar a realidade econômica em tempo curto. Não penso que haja, por enquanto, a menor intenção de transformar Cuba em uma economia de mercado, mas há a ideia de transformar as condições para integrar o país à economia mundial.
Quais são os interesses dos Estados Unidos? Econômicos? Políticos?
Não se discute nesse momento, até porque isso quem deve fazer é o Congresso americano, o fim do bloqueio, mas tem aí um sentido muito importante de redefinir as relações no nível regional. Ao mesmo tempo, não podemos esquecer que os EUA entendem a nova realidade latino-americana principalmente pelo esvaziamento da capacidade europeia de atuar aqui e da ampliação da capacidade chinesa de estabelecer novas relações com a América Latina. Cuba tem uma posição estratégica se pensarmos no sentido geopolítico para favorecer negócios em relação aos Estados Unidos e à Europa. A construção do porto em Mariel não foi algo aleatório, havia ali uma visão estratégica em termos de relações econômicas. Cuba, apesar de sua economia demandar investimentos mais direcionados, tem como contribuir no quadro regional e internacional com base em seus recursos humanos, biotecnologia e turismo.
Esse acordo altera, de algum modo, tanto o discurso antiamericano de parte da esquerda quanto o da direita que vê em um Cuba um perigo socialista?
As mudanças ocorrerão dos dois lados. Muda o discurso mais reativo à participação de Cuba nos negócios do continente, seja por parte das elites políticas seja dos cubanos-americanos que, a partir dessa hostilidade, pautam a agenda política americana. E eu diria também que talvez essa aproximação diplomática faça com que a própria esquerda latino-americana tenha de reestruturar um projeto, que não existe, no sentido de perceber qual é a realidade hoje dos países em que se mantém o socialismo.
Essa reaproximação deve impactar a Cúpula das Américas, no Panamá, em abril de 2015?
Muito provavelmente. A ideia agora é de efetivamente integrar Cuba nos grandes fóruns latino-americanos sem constrangimento. Até então, sempre o convite a Cuba e a participação cubana ocorriam a partir de algum constrangimento. Isso agora provavelmente não ocorrerá mais. O impacto nas discussões será evidente, inclusive no que diz respeito à legitimidade da relação desses países com Cuba sem a hostilidade norte-americana. Não me parece que vai haver mais grandes obstruções à integração de Cuba.
Esse acordo tem impacto em outros países? Rússia? Leste Europeu? Em que esferas?
Cada realidade é uma. Em relação a Cuba, existe uma preocupação regional, que não é a mesma em relação à Rússia nem à China. É um impacto importante porque, vamos dizer, confere aos EUA um certo prestígio ao eliminar esse foco de conflito. Mas outros focos permanecem e são muito importantes. Essa foi uma ação, bem pensada, que realmente redefine as relações regionais, mas no plano internacional há muito a fazer. Há outros pontos que devem ser solucionados na política externa dos EUA e que estão longe de uma resolução, como a presença no Afeganistão, no Iraque, mesmo agora com a nova realidade no Oriente Médio com o surgimento do Estado Islâmico. Ainda há muitos problemas a resolver no plano internacional e que dizem respeito também às relações com as outras potências, como a Rússia que reemerge no cenário.