
Amigo de Fidel e Raúl Castro e autor de livros sobre Cuba, entre eles um que trata dos cinco presos cubanos nos Estados Unidos que agora foram libertados por conta do acordo (Os Últimos Soldados da Guerra Fria), o jornalista e escritor Fernando Morais deu a seguinte entrevista para Zero Hora:
Então, vivemos hoje um momento histórico?
Histórico, histórico, claro. As nossas gerações, e a minha em particular, estão tendo o privilégio de viver transformações políticas e tecnológicas muito interessantes. Quando Cuba foi bloqueada pelos Estados Unidos, eu tinha 16 anos, mal sabia o que era aquilo. Agora, começamos a ver o fim disso. É muito importante, não só para Cuba e Estados Unidos, mas para a tranquilidade do mundo, porque, na minha opinião, a Guerra Fria acabou nesta quarta-feira, às 15h01min pelo horário de Brasília. Acabou, acabou. Porque o que está havendo na Ucrânia e no Oriente Médio não é Guerra Fria, é guerra mesmo, guerra quente. Então, é da maior importância.
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O que vem pela frente?
É, ainda não acabou. O bloqueio ainda existe.
Mas, pelo jeito, há vontade política de terminar com ele.
É, mas aí tem uns detalhes. O Bill Clinton fez uma coisa da qual ele se arrependeu depois e que, no seu livro de memórias, ele fala, cita o erro, que foi a promulgação da Lei Helms-Burton. A partir do momento em que ela foi promulgada, o presidente perdeu o poder para revogá-la, só o Congresso pode fazer isso. E, com esse Congresso conservador como não se via há muito tempo nos Estados Unidos, não vejo perspectiva de revogação da Helms-Burton tão cedo.
O que ocorrerá de prático, imediatamente?
Tem um negócio que já vai produzir resultados concretos imediatos que é o seguinte: o restabelecimento das relações diplomáticas passa a permitir que cidadãos americanos possam ir a Cuba. Tem um estudo que diz o seguinte: na hora que acabar a proibição de americanos visitarem Cuba, o número de turistas estrangeiros que visitam Cuba subiriam dos atuais 3 milhões por ano para 9 milhões por ano. Isso significaria um aporte de US$ 15 bilhões anuais à receita cubana, em divisas. Isso significa 25% do PIB cubano. É bom para todos.
E o Brasil nisso tudo?
Uma coisa que é importante chamar a atenção é que o Brasil, o Lula e a Dilma têm sido crucificados pela mídia, pela internet, por causa do financiamento do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) ao porto de Mariel. Pois terão de engolir a crítica. A zona especial de desenvolvimento de Mariel, que os cubanos não gostam que chamemos de "projeto chinês", vai ser, agora, já, o maior centro de armazenamento a cem quilômetros de Miami.
O Brasil tem ainda muito a ganhar?
Cuba, para receber essa avalanche de turistas, já vem, desde o fim da União Soviética, fazendo parcerias com redes importantes de hotéis. Então, tem uma baita rede, de primeira linha, no país inteiro. A partir de agora, vai se iniciar um processo intenso de restauração de Havana Velha, do porto, porque todos os cargueiros passam a ir para Mariel. Ali, haverá uma espécie de Puerto Madero, como a Argentina tem em Buenos Aires. Empresas do mundo inteiro estarão lá disputando uma fatia. Meu caro, é claro que na hora de decidir entre uma empresa brasileira e uma italiana, uma brasileira e uma alemã, os cubanos vão dizer o seguinte: quando a gente estava com a corda no pescoço, quem veio em nosso socorro foi o Brasil. Por que vamos passar a obra para os italianos. É o ditado popular que diz "quem chega mais cedo bebe a água mais limpa". As pessoas que criticaram o financiamento ao porto de Mariel terão de repensar isso agora.
O senhor chegou a falar com os cinco cubanos que estiveram presos nos EUA e que estão todos eles agora libertados?
Falei ou por e-mail ou por telefonemas muito curtos, que eu ia para Havana e aproveitava, porque só parentes podiam falar com eles. Eu aproveitava a cota de tempo que as mulheres e os filhos tinham para falar com eles. Aproveitava pedacinhos para falar com eles.
Mas hoje?
Não, não, eu fiz isso para o livro. Hoje, não. Hoje, não falei com ninguém. Tive uma roda-viva, tive reunião da Comissão Nacional da Verdade.
Mas agora eles estão em Havana. O senhor vai falar com eles? Se emociona com isso?
É muito emocionante, quem viu tanta mulher chorando, tanta mãe chorando, tanto filho chorando. Fico pensando nas duas mães que morreram e não puderam ver os filhos em liberdade. Falei com um deles, porque a edição britânico-americana do meu livro, que vai sair agora, a pedido dos editores, terá um capítulo adicional com o René, que foi o primeiro libertado. E eu fui a Havana gravar com ele. Me aproximei muito dele. Eu soube pela embaixadora de Havana, muito emocionada.
O senhor vai falar com eles agora?
Se eu pudesse, pegaria uma avião e iria até lá agora. Quero tomar um mojito com eles.
A visão antiamericana, de países como a Venezuela, e a visão intransigente em relação a países governados pela esquerda são resquícios da Guerra Fria?
Acho que a Guerra Fria terminou nesta quarta-feira.
E Obama, com esse gesto, afirma-se na História?
Acho que agora ele faz jus ao Nobel da Paz que ganhou. Até agora, ele não tinha feito por merecer.
E o Papa?
Você sabia que a data para o acordo foi escolhida pelo Obama e pelo Raúl porque é o aniversário do Papa? Alguém me ligou de Cuba e me contou isso. O acordo já estava amarrado fazia alguns dias, e o Obama e o Raúl ficaram de estabelecer a data do anúncio simultâneo. Ficou, então, no dia 17, aniversário do Papa, às 15h01min. Não é legal?
O que muda na imagem dos EUA?
Só melhora. Cheguei a pensar, quando disseram que ele iria anunciar alguma coisa, que ele iria fechar Guantánamo. Aí, vi que era essa maravilha que é o reatamento das relações diplomáticas, nunca passou pela minha cabeça isso. Acho que foi muito importante, estou muito feliz de ter sido testemunha privilegiada pelo fato de ter feito o livro.
Mas o Obama em especial...
Olha, eu tinha achado que caíra no conto do primeiro presidente negro. Poderia ser uma revolução. Vou te confessar: entrei no site da primeira campanha do Obama e comprei, por US$ 5, um boné, para ajudar. Até agora, eu estava arrependido de ter dado US$ 5 para a campanha desse cara. Na verdade, os democratas foram os presidentes que mais meteram os EUA nas aventuras imperialistas. Os republicados os retiram. A diferença entre um democrata e um republicano, só os americanos veem, é uma questão de mais ou menos impostos.
Mas o democrata Jimmy Carter não fez diferença para nós, latino-americanos, ao ajudar a derrubar as ditaduras, inclusive do Brasil?
Mas o Carter é uma exceção, é um São Francisco de Assis, um ativista de direitos humanos. Sobre os cinco de Cuba (agora todos eles soltos), ele foi contra, assim como foi contra a lei Helms-Burton, que via como uma armadilha e que agora a gente constata que é mesmo uma armadilha, porque impede que o Obama a revogue e termine com o embargo.
Onde o senhor estava quando recebeu a notícia?
Eu estava em casa, trabalhando, quando a embaixadora de Cuba no Brasil me ligou muito emocionada. Ela recém havia recebido a notícia e disse que estava compartilhando comigo pela primeira vez, a primeira pessoa com quem ela compartilhava.
Muda a lógica da Guerra Fria, então? Muda o mundo?
Sim, isso desarma o mundo. Agora, se alguém quiser mandar um cara de esquerda longe, ele não diz mais "vai pra Cuba, comunista". Ele diz "vai pra Washington, comunista".
O mundo fica mais leve.
Sim, o mundo fica mais leve.
Linha do tempo: a história de Cuba em 15 momentos
* Zero Hora