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Às vezes começa com um bolo.
Recém chegado ao bairro Floresta e curioso por natureza, o estilista Victor R.R. Mendes esgueirou-se, certa noite, para um salão, em meio a um amontoado de pessoas. De ouvido, percebeu se tratar de uma reunião da paróquia local sobre problemas que soam familiares a todo porto-alegrense: assaltos, falta de policiamento, iluminação precária... Sobretudo aos finais de semana, quando o entorno das avenidas Farrapos e Cristóvão Colombo dava ares de faroeste. Nos relatos acalorados dos moradores, boa parte das angústias levantadas pelo psicanalista Christian Dunker, no livro Mal-estar, Sofrimento e Sintoma.
Victor, no entanto, propunha uma solução inusitada: encher a rua de moradores em um fim de semana desses. Mobilizar uma confraternização que se estendesse até o anoitecer. A recepção não foi antipática, mas cheia de veja bens.
- Bom, eu vou fazer um bolo e descer. Quem quiser que me acompanhe.
Na primeira edição do Festival da Boa Vizinhança, no final de 2012, acompanharam uns 400. Na ocasião seguinte, 1.100. No domingo passado, para uma variação do evento, o Festival Mais Bonito do Mundo, cerca de 4 mil apareceram para trocar uma ideia e umas broas de fubá com os vizinhos debaixo das tipuanas da Rua Gonçalo de Carvalho (o nome do evento brinca com a fama da rua, de mais bela do mundo).
O festival é demonstração de uma tendência de pequenos eventos - de convivência pura e simples, ou de gastronomia, música, arte e o que vier - para reaproximar as pessoas das ruas e, consequentemente, umas das outras. São mobilizados, via de regra, por jovens nem tão jovens assim. Perto dos 30 anos, eles ainda têm um referencial de infância com brincadeiras na rua e lamentam as escolhas da geração dos seus pais - a que colocou a família dentro do carro e levou para um apartamento longínquo, em busca de tranquilidade e segurança.
- Uma coisa que aprendi é que, se você não tomar a rua, tomam ela de você. É claro que não vai ter segurança: por que a polícia vai passar ali se está todo mundo com medo trancado em casa? Ocupar a rua é também uma forma de tirar o poder público da zona de conforto. De obrigar ele a te dar segurança - avalia Victor, da república de empreendedores La Casa de Pandora.
Presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do RS, Roberto Py também vê relação entre a leniência do poder público e a degradação de espaços. Uma em que causa e consequência se misturam:
- Quando a prioridade de uma administração é o caixa, o abandono de um espaço "resolve" um problema do governante. Ele não investe mais em conservação, iluminação, patrulhamento porque ninguém está lá mesmo. E ninguém vai porque é perigoso e mal conservado. Prefeitos não são contra as pessoas conviverem, desde que isso não os onere. Por isso são campeões em fechar ruas para pedaladas e caminhadas aos domingos. Porque o custo disso são uns cavaletes.
Pela delicada questão da medida certa, eventos como o Serenata Iluminada na Redenção - em que o parque é tomado de lanternas, lamparinas e artistas - ou a cerveja à beira do laguinho no Largo dos Açorianos, ainda incomodam parte dos moradores. Alguns pelo barulho, outros pelo lixo deixado para trás na manhã seguinte. A concentração no Açorianos, por exemplo, não durou muito, mas serviu para dar um estalo no chefe de cozinha Rodrigo Paz:
- Senti a demanda de gente legal querendo fazer coisas legais. A ideia foi promover essa aproximação em forma de comida, como já rola em cidades como São Paulo, na Rua Augusta, e em Buenos Aires, em San Telmo.
Assim nasceu o Comida de Rua, que leva uma vez por mês até 20 chefes e 17 foodtrucks a locais pouco frequentados aos finais de semana, como a Praça da Alfândega e a esquina da Avenida Praia de Belas com a Rua da República, no limite com a Cidade Baixa.
- O curioso é que a prefeitura sequer tinha um procedimento para quem desejasse promover um evento na rua. Junto com a organização do primeiro é que elaboramos uma cartilha com eles, que passou a valer desde então - observa Rodrigo.
Arquiteta pós-graduada em economia da cultura, Aline Bueno trabalha com um conceito corriqueiro mundo afora mas que ainda engatinha no Brasil, o de centros cívicos. A ideia é transformar imóveis abandonados, carentes de reforma e de "ativação" - termo que Aline gosta de utilizar em vez de "ocupação", que daria uma ideia equivocada de tomada de posse. Assim nasceram iniciativas permanentes como o Vila Flores, casarão na Rua São Carlos, no Floresta, transformado em centro de cultura, educação e negócios criativos aberto ao público, e outras sazonais, como o Café na Calçada, confraternização matinal no passeio da Rua Felix da Cunha.
- Todos têm uma aposta em comum, a de que a gente cresce na troca com quem é diferente - declara Aline.
Na opinião do arquiteto e urbanista Leonardo Brawl, o movimento de retomada de espaços de convivência ainda não encontra reflexo no mercado imobiliário residencial. Ao menos não o suficiente para destronar a ideia de empreendimentos com apartamentos minúsculos, cujos diferenciais costumam ser boxes de garagem e espaços gourmet, kids, pets e outros que, para Leonardo, não por acaso acabam ociosos:
- São espaços feitos para vender o imóvel, não para serem utilizados. Se a opção fosse, de fato, elaborar locais de convivência, seriam feitas opções que respeitassem mais a nossa vocação cultural, como um térreo aberto com praças secas, canteiros, jardins e um bom salão. Terraços para observar a cidade, por exemplo: o último deles deve ter sido construído na década de 1980. Só que, para retomar essa ideia, seria preciso vender uma cobertura duplex a menos - especula o arquiteto do TransvençãoLAB, laboratório de projetos de interesse social.
Jornalista e cofundador da Lung, empresa de projetos de engajamento cívico e transformação de cidades, Daniel Bittencourt considera o condomínio a "maior jogada de marketing de todos os tempos".
- Ele nunca conseguiu entregar aquilo que prometeu em termos de bem-estar e segurança, e começamos a nos dar conta disso. Não tenho dúvida de que o despertar das pessoas faz da cidade a grande pauta do momento.
Robert Ezra Park, sociólogo urbano falecido em 1944, via a cidade com ainda mais reverência. Para o americano, se trata da "mais bem-sucedida tentativa do homem de refazer o mundo onde vive de acordo com o desejo de seu coração". E por mais diferentes que sejam os corações de cada um, é difícil imaginar que desejemos mesmo viver solitários e enclausurados.