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*Professor de literatura na UFRGS e escritor
Estamos vivendo, na escola brasileira e particularmente no Ensino Médio, o miolo de uma transição lenta, tectônica, entre um paradigma de quase 50 anos de vida, definido pelo Vestibular, e outro que mal se apresenta, mas dotado de força política descomunal, o Enem, que se associa a uma série de outras iniciativas federais, como o FIES, para financiamento, e o Sisu, para a alocação de vagas no ensino superior federal. O Vestibular Unificado, com suas "perguntas de resposta objetiva", começou no Brasil nos primeiros anos 1970 e forjou todo um sistema e uma linguagem de estudos, toda uma maneira de abordar o conhecimento.
Resultou nesse concurso que conhecemos até ontem, com seu aspecto enciclopédico monstruoso, que demanda uma dedicação insana e grandemente desperdiçadora de tempo - todos os candidatos, independemente do curso que desejavam, prestavam as mesmas provas, sobre os mesmos conteúdos. Iniciado há uns 10 anos, o Enem surgiu como um exame para avaliar o estado da coisa no Ensino Médio mas se converteu, pouco depois, no que é hoje - o grande, virtualmente o único meio de ingresso dos jovens na universidade pública brasileira (a mais forte exceção, ainda agora, está nas universidades estaduais paulistas, USP, Unicamp e Unesp, que elaboram seu vestibular isoladamente - acaso que seja o estado mais rico e com as universidades mais importantes do Brasil e da América Latina?).
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O Enem veio sendo imposto a todas as federais, que agora o adotam ao menos parcialmente, como a UFRGS, como critério de ingresso, através de políticas de pressão forte. Grandes universidades, como a UFRJ, parece que negociaram a adoção do Exame mediante compensações orçamentárias. E agora o Enem se faz acompanhar de outra novidade, objeto de atenção aqui: a Base Nacional Comum Curricular (BNC).
Divulgada em documento do MEC, a BNC está, diz o Ministério, "em discussão". Como? Bem, é possível mandar comentários, através do site. Serão levados em conta? Quem delibera? Me permito duvidar da eficácia dessa consulta, dado o histórico recente do MEC no caso do Enem: depois do pé na porta, convida para a conversa.
Os princípios maiores da BNC, organizado nas mesmas quatro áreas de conhecimento que organizam as provas do Enem, são defensáveis em sua formulação, que, como sempre acontece em documentos dessa natureza, apresenta generalidades e boas intenções. Quanto ao Ensino Médio, nosso foco aqui, fala-se em "articulação interdisciplinar", algo inequivocamente justo ao nosso tempo. Mas como isso se traduz na prática?
Para não ir além das minhas tamancas, vou me cingir ao que se propõe para o ensino de Literatura no Ensino Médio, com dois acréscimos breves, sobre Arte e História. Das Artes, as boas intenções não são poucas: há 11 objetivos para as Artes Visuais, nove para a Dança, 12 para o Teatro e outras nove para a Música. Excelente - e provavelmente inexequível, porque em regra não há, simplesmente não há aulas de Artes no Ensino Médio.
Na História, pode-se ter uma ideia do péssimo cenário que aguarda os futuros estudantes ao ler o "enfoque predominante" de cada uma das três séries do Ensino Médio: no primeiro ano, "Mundos ameríndios, africanos e afrobrasileiros"; no segundo, "Mundos americanos"; e no terceiro, "Mundos europeus e asiáticos". Sem ir muito longe, se vê o giro proposto: em lugar de pensar o Brasil como parte do Ocidente, agora haverá uma ênfase de 2/3 do currículo ligados à própria América e à África, restando o outro terço para todo o resto, incluindo a Europa. Parece menos um roteiro novo, e mais uma vingança terceiro-mundista.
No campo das Linguagens - nome oficial no jargão da BNC e do Enem - se fala em combater certas mazelas atuais, como o tecnicismo, a teoria distante da prática, a fragmentação, o distanciamento da realidade social dos estudantes, a distância entre a escola e as tecnologias digitais. Ok, aplauso geral. Mas quando se chega na prática...
Para o Primeiro Ano do Ensino Médio, recomenda-se estudar itens relevantes de estrutura literária - foco narrativo, composição de personagens, etc., assim como rimas, aliterações e outros dados do texto poético -, ao lado de sugerir-se a prática e a reflexão sobre gêneros curtos (contos, poemas, crônicas, etc.). Além disso, se fala em prestar atenção ao diálogo da Literatura Brasileira com "questões contemporâneas", recomendando-se comparar o local e o global. Até aí, tudo certo.
Mas as duas outras proposições para este ano, que definem um contorno concreto de conteúdo, são de lascar: "Ler produções literárias de autores da Literatura Brasileira Contemporânea, percebendo a literatura como produção historicamente situada e, ainda assim, atemporal e universal". O corte cronológico é o "contemporâneo", sem data. Seria o quê: século 21? (Nem comentemos a perpetuação do velho jargão idealista de "atemporal e universal", coisa que eu pensava haver sido abandonada há tempos.)
Depois, outra afirmação conteudística: "Interpretar e analisar obras africanas de língua portuguesa, bem como a literatura indígena, reconhecendo a literatura como lugar de encontro de multiculturalidades". Logo se reconhece o jargão de nosso tempo, que vai ser ultrapassado na próxima esquina da história; o que eu pergunto é se está minimamente claro de que obras se trata: "africanas de língua portuguesa" deve querer sugerir abordar os recentes casos de Mia Couto, Pepetela e outros relevantes escritores, mas não sei se tão relevantes a ponto de merecer item à parte nesse contexto; agora, "literatura indígena" é conceito claro? Quererá o documento se referir aos escritores atuais que se identificam como indígenas? Apenas os brasileiros? Ou os americanos em geral? E mais uma vez: têm eles, sejam quais forem, relevância para figurarem aqui, no primeiro ano do Ensino Médio, com esse destaque?
Para o segundo ano, recomenda-se estudar o que se chamava figuras de linguagem, bem como analisar narrativas com enredo "de cunho psicológico, tempo não linear, inovações nas formas de registrar as falas dos personagens, diferentes vozes do texto". No que se refere ao corte cronológico, se pode começar a confirmar o fraquíssimo teor da proposta. "Ler produções literárias de autores da literatura brasileira dos séculos 20 e 19, em diálogo com obras contemporâneas". Temos aí duas informações relevantes: uma, que no segundo ano os alunos terão contato com a literatura brasileira dos século 20 e 19, nesta ordem. Pouca coisa: para nem citar todos, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Drummond, Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues, mais Alencar, Castro Alves, Bilac, Lima Barreto, Cruz e Sousa, Bandeira, Oswald de Andrade, João Cabral, Rubem Fonseca e quem mais vier. Programa exequível? Em um ano escolar?
A outra informação vem por contraste: se no segundo ano se estudarão os século 20 e 19, fica claro que no primeiro aquele "contemporânea" se refere ao século 21 mesmo. E se impõe a pergunta, que faço desolado: temos nós alguma maturidade, como nação, como universidade, como circuito letrado, como o que quer que seja, para saber quais autores desses meros 15 anos merecem ocupar um ano inteiro entre três, no Ensino Médio? É de um presenteísmo lamentável!
Para o terceiro ano, finalmente, o documento sugere "analisar a interação que se estabelece entre a narrativa literária e o seu contexto de produção (ideologias, vozes sociais, outros textos, tradições, discursos, movimentos culturais, políticos etc.), considerando também o modo como a obra dialoga com o presente". Bem.
Como seria de esperar, no que se refere ao corte cronológico, só podemos ter uma diretriz: "Ler produções literárias de autores da literatura brasileira dos séculos 18, 17 e 16". Como se vê, o programa reserva aos alunos que estão saindo da escola, - no ano em que estão mais maduros do que nunca, em suas vidas pessoais - um repertório como este, em que, para ficar num exemplo eloquente do descritério dos formuladores, não existe romance. Simplesmente não há, no Brasil, romance, antes do século 19. Nem conto, nem teatro realmente relevante, nem crônica.
Quer dizer: a proposta (a) inverteu a cronologia do paradigma do vestibular, (b) incluiu escritores africanos e indígenas recentes (mas sem destaque para autores afrodescendentes, note-se), (c) atribuiu um ano escolar inteiro para a leitura de livros deste jovem século 21, acavalando os dois séculos realmente relevantes da produção literária brasileira em outro e impondo uma seca de leituras para todo o terceiro ano; para além disso, (d) abandonou a linearidade por assim dizer positiva, anterior, em favor de uma outra, negativa, muito menos propensa a uma perspectiva inteligente para formar o leitor na escola, e, finalmente, (e) manteve o horizonte nacional brasileiro como quase único, com exceção dos africanos de língua portuguesa, abandonando qualquer referência aos portugueses e perpetuando a exclusão da literatura não brasileira - quer dizer, deixando os jovens brasileiros em seu lamentável isolamento em relação à América e ao Ocidente.
As sugestões do documento BNC no que se refere ao corte cronológico e à distribuição da Literatura ao largo dos três anos são muito ruins, e conseguem piorar o que tínhamos. Se o destino for generoso conosco, serão abandonadas, em favor da boa formação de leitores. A inclusão de autores africanos de língua portuguesa e daquela incerta literatura indígena tem aspectos positivos, naturalmente, a começar pelo fato de reconhecer fortes durações culturais que a escola brasileira vinha negligenciando ou ignorando; mas essa inclusão não resolve o problema de abordar a formação da população e da cultura brasileiras no todo, já porque esses dois grupos de autores sugeridos abrangem apenas parte do universo brasileiro, permanecendo de fora, sem ir mais longe, toda a herança ocidental e o mundo americano não brasileiro.
Pensada a coisa por um caminho otimista, temos uma boa perspectiva com a entronização do Enem como vestibular geral do país e a BNC como horizonte. Se não é mais necessário decorar as três gerações românticas, nem manter o prestígio excessivo que parnasianos e modernistas paulistanos tinham, artificialmente, quem sabe podemos passar a abordar Poe e Goethe, ao lado do nosso Alencar? Com a literatura indígena agora recomendada, quem sabe não conseguimos perceber a importância dos caboclos, também eles índios, como personagens e autores da literatura brasileira já existente, como por exemplo aqueles que aparecem nas grandes obras de Simões Lopes Neto e Guimarães Rosa, representativos do amplo mundo do sertão, do mundo não urbano e não integrado ao mercado? Em aliança com a leitura desse mundo caboclo/indígena, imaginemos a beleza de oferecer a leitura de Cem Anos de Solidão assim como de algum conto de Juan Rulfo, ambos escritores de provada qualidade, ambos diretamente envolvidos com o mundo indígena americano.
E por que não abandonar a visada linear da história trivial da literatura que vicejou na escola brasileira nos braços do paradigma do vestibular, em favor não dessa simplista inversão da cronologia, mas de abordagens que mostrem longas durações relevantes, no romance dedicado a dar voz aos de baixo, os Almeida, os Lima Barreto, os Graciliano, até chegar, claro, aos Bonassi, Ferréz, Rubens Figueiredo, Ruffato de hoje? E quem sabe possamos mostrar blocos históricos não como supostas "escolas literárias", mas em sua forte tensão interna, como queria aliás Walter Benjamin, por exemplo mostrando a força estranha (e problemática, mas viva) da narrativa feita por mulheres ainda no século 19, a contrastar com a relativa serenidade e até o conformismo dos desenhos femininos de Alencar e de Bilac, tudo isso tendo ao fundo o claro e ativo feminismo de Machado de Assis?