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Confesso: eu nunca tinha ouvido falar em Vitor Araújo, embora ele já tivesse lançado dois discos, em 2008 e 2013, com distribuição meio restrita a Pernambuco. Ouvindo agora o terceiro, o álbum duplo Levaguiã Terê, me espanto com a impressionante novidade do pianista e compositor de 26 anos que, aos 12, tocando música erudita, era considerado um prodígio pela imprensa de Recife. Só que, enquanto estudava os clássicos no conservatório, em casa ouvia Luiz Gonzaga, Chico Buarque, Björk, The Knife, Radiohead.
Vitor é um fenômeno irrotulável. Singular, sua música pode absorver designações como vanguardista, experimental, concreta, eletrônica, minimalista. Passa por aí e muito mais. Lançado em novembro com apresentações em Recife, Rio e São Paulo, o disco requer muitas audições para ser assimilado.
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Ele não gosta de ser visto como um "erudito rebelde". Em entrevista recente, disse que sempre teve interesse pelo método composicional erudito, "mas não diria que este é um disco erudito, longe disso". Seu primeiro trabalho para orquestra, Levaguiã Terê começou como um estudo sinfônico do candomblé e, durante o processo criativo de cerca de um ano, ampliou-se para a ideia de sincretismo entre o africano, o indígena e o europeu. Em outra entrevista, resumiu: "Na hora de escrever para orquestra, olhei o raciocínio orquestral de VillaLobos e dos compositores aos quais ele se reportou, como Stravinski e Ravel. Difícil não ter em meu trabalho os artistas que ouvi. Portanto, tem Villa, o erudito que mais ouvi na vida, e Radiohead, a banda que mais ouvi". A partir daí, já se começa a fazer uma ideia mais aproximada do que esperar.
O título do álbum vem de uma lenda indígena: Levaguiã Terê é um pássaro que voa sob o solo, não se pode vê-lo, apenas ouvir seu canto. Coproduzidos por Bruno Giorgi, os discos têm 14 temas, agrupados com os nomes de Toque no disco 1 e Canto no disco 2, com subtítulos como Fraxiteira, Turvalema, Ôgiffoxó, Arcalandir, Faxá-guiã e Tear Carrandil, palavras mortas de raízes iorubá, indígena e europeia. Além da orquestra de 30 figuras, mais 12 músicos tocam violão, guitarra, baixo, órgão, sintetizadores, percussão, bateria e, claro, piano. Feita por ex-integrantes do Cordel do Fogo Encantado, a percussão é fundamental. Nos Cantos (sem letras), a etérea e sombria voz de Vitor surge como um instrumento na massa sonora às vezes delicada, às vezes ruidosa, outras grandiloquente. Nada parecido foi feito no Brasil.
Desde sempre seu maior estimulador, o pai de Vitor morreu durante as gravações. Por isso ele anota, no encarte: "Este presente disco, os que o precederam e todos que porventura o sucedam são inteiramente dedicados ao meu pai, pois a razão maior que me move a fazêlos é orgulhá-lo".
LEVAGUIÃ TERÊ
De Vitor Araújo
Álbum duplo, R$ 35, Natura Musical, disponível nas plataformas digitais.
Dê uma olhada no site vitoraraujo.com.br.
Andreia Horta é Elis Regina
Depois de três livros biográficos e um musical de teatro, a vida de Elis chegou ao cinema. O filme de estreia de Hugo Prata, em cartaz desde a semana passada, tinha uma boa responsabilidade. E ele se dá bem, ao mostrar que as vidas pessoal e artística da cantora sempre se confundiram. Elis não sabia ou não queria se dividir, como faz a maioria dos artistas.
Mas se o filme não comete um dos pecados do musical, que mostrava (na visão carioca) uma Elis caipira chegando ao Rio, gasta tempo demais na relação passional dela com Ronaldo Bôscoli, em detrimento de outras passagens marcantes de sua trajetória. A falha mais grave é a total ausência do episódio da gravação em Nova York do disco Elis & Tom, em 1974, que marcou a carreira dos dois – Águas de março não está no roteiro. Fora isso, as várias "épocas" de Elis estão bem representadas.
Um dos grandes acertos do filme é ter mantido as gravações originais de Elis dubladas brilhantemente pela atriz Andréia Horta. E o maior acerto é ter descoberto Andréia, que sublinha tudo com uma atuação do tipo inesquecível. Estive muitas vezes com Elis, sei do que falo. Andréia ficou Ela. As atuações de Caco Ciocler como César Camargo Mariano e Julio Andrade como Lennie Dale também são muito boas.
FACCIAMO L’AMORE
De Carlos Careqa
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Uma das facetas de que mais gosto em Carlos Careqa é que ele é sempre surpreendente. Depois de um álbum dedicado a Tom Waits, o ótimo Por um pouco de veneno (2015), ele agora virou um artista italiano. Diz que tudo começou numa viagem para a Itália em 2014, quando visitou a cidade em que nasceu seu trisavô – que veio como imigrante para Santa Catarina. De volta ao Brasil sentiu um ímpeto de compor em italiano. Facciamo l'amore não tem uma única palavra em português, nem nas fichas técnicas. São baladas, rocks e cançonetas inspiradas naquela música italiana que conquistou o mundo nos anos 1960. "O disco todo é dedicado ao Luigi Tenco", diz Careqa. Gravado ao vivo com um afiado grupo (violão, violoncelo, piano, bateria, tuba) liderado por Mario Manga e Marcio Nigro, começa com o rock Cani di ladri, sobre "estes cães ladrões que ocupam a política brasileira". Quer dizer: as letras são bem atuais, mesmo nas canções românticas. O humor aparece em músicas como I falsi amici, brincando com palavras italianas que em português têm a mesma grafia mas significados diferentes. Além de tudo, o álbum tem vários convidados especiais: Zeca Baleiro, Bruna Caram e os italianos Mafalda Minozzi, Anna Clementi, Mariano Deidda e Celine Imbert. BED/Tratore, R$ 21, disponível nas plataformas digitais.
GRIS
De Juliana Cortes
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A inédita Uma carta uma brasa através, poema de Paulo Leminski musicado por Vitor Ramil, abre o segundo álbum da cantora curitibana Juliana Cortes. Desde o primeiro disco (Invento, 2013) adepta da estética do frio, ela agrupou músicas que dialogam com esse espírito sulino, meio melancólico, e outras mais identificadas com a MPB clássica, mas da mesma forma sem climas tropicais. Juliana diz que o primeiro filtro para a escolha do repertório foi buscar canções com narrativas, "poucas vezes a poesia aparece em primeira pessoa". É o caso de Germinal, do uruguaio Dany López, e de O mal, tango de Dante Ozzetti e Arrigo Barnabé. Produtor do disco, Ozzetti construiu arranjos delicados para apoiar a voz também delicada e linda de Juliana. Praticamente o mesmo grupo de grandes músicos participa dos arranjos, exceto no quase-tango Bandida (Grace Torres/Ulisses Galetto) e em Mismo (Leo Minax/Estrela Leminski), ambas gravadas em Buenos Aires com músicos argentinos – em espanhol, Mismo tem a participação de Paulinho Moska. Entre os destaques, duas belas canções: Circular 102 (Leo Minax/Chico Amaral) e Balangandãs (Maurício Pereira). Outras milongas (Ozzetti/Luiz Tatit), cuja letra se refere ao RS, fecha o disco. Fundação Cultural de Curitiba/Tratore, R$ 28, disponível nas plataformas digitais.