
As pessoas são tão solidárias. Aquele RadarBlitzPOA, por exemplo. Você deve conhecer, é muito engenhoso: trata-se de uma conta colaborativa do Twitter dedicada a alertar motoristas sobre a localização das blitze da EPTC. Todo mundo se ajuda, um bêbado avisando o outro.
Não tenho carro, mas percebo a tranquilidade que o RadarBlitzPOA propiciou a dezenas de amigos meus. Eles jamais se preocupam com o bafômetro. Depois de encher a cara sem culpa nenhuma, sacam do bolso seus celulares, fitam a tela com os olhinhos vermelhos e, não é uma beleza?, lá está a benevolente ferramenta para salvá-los das garras arrecadadoras de azuizinhos e brigadianos.
Assim é que se constrói um mundo civilizado.
Posso ver na minha frente, enquanto escrevo, o empresário Thiago Brentano consultando o RadarBlitzPOA antes de sair daquela festa na qual comprou 10 cervejas. Sorte que uma boa alma, ali no Twitter, deve ter lhe mostrado o melhor caminho, que era pela 24 de Outubro. Porque, imagine se uma blitz parasse Thiago naquela noite, coitado. Ele já tinha 52 multas, estava com a carteira suspensa e havia bebido. Seria um alvo perfeito para os azuizinhos, aqueles mequetrefes que vivem a perseguir o cidadão de bem.
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Claro, Thiago deu azar, acabou exagerando na velocidade e quase matou um jovem casal na esquina do Parcão, mas, raciocine comigo, já pensou se o RadarBlitzPOA não existisse? Thiago talvez nem saísse de casa com o seu carro. Porque ele teria medo, ele nunca saberia onde as blitze da EPTC estariam escondidas, então seria obrigado a cumprir a lei e a parar de dirigir, o que seria um retrocesso da nossa sociedade, hoje tão prestativa com incompreendidos como ele.
Aliás, não entendi por que tanta gente ficou chocada com o atropelamento. Se a própria sociedade inventa mecanismos para driblar a lei e para facilitar a combinação entre direção e álcool, pensei que ela soubesse que, de vez em quando, alguém pudesse se dar mal. São os ônus do bônus, não? Porque bandido mesmo, você sabe, é aquele que dá tiro, que trafica e que rouba, não quem faz bobagem no trânsito – você mesmo talvez tenha um filho que às vezes corre um pouquinho demais, mas no fundo sabe que ele é um bom garoto.
Ainda bem que, em toda campanha eleitoral, há sempre candidatos sérios, comprometidos com o bem-estar social, denunciando essa hedionda indústria da multa. Protestam corajosamente contra pardais ocultos em postes e árvores, símbolos de um tirânico sistema de opressão cuja única finalidade é lesar o bolso do pobre contribuinte. Porque, vamos combinar, onde já se viu o Estado tirar dinheiro de quem descumpre a lei? Por que raios a indústria da multa nunca prejudica quem cumpre a lei?
Ora, essa gente que respeita os limites de velocidade, que aceita andar a 60 por hora como se fôssemos tartarugas manquitolas, por favor!, nunca vi a indústria da multa prejudicar esse bando de lerdos! Não é justo, não vamos aceitar! Pelo menos ainda contamos com uma legislação muito adequada – só o que falta quererem mudar. O caso de Thiago Brentano, por exemplo.
Ele bebeu cerveja, dirigiu em alta velocidade, furou o sinal vermelho, atropelou duas pessoas, não prestou socorro e fugiu do local. Um desembargador, um juiz e um promotor do Ministério Público disseram-me que a probabilidade de ele acabar preso é: nenhuma. Sua pena deve ser reduzida a prestação de serviços comunitários. Ufa! Cheguei a pensar que poderiam tratá-lo como bandido.
Mas, felizmente, os autores da legislação, nossos parlamentares, são pessoas muito conscientes. Sabem que o rapaz que bebe e corre à noite poderia ser seu filho, seu sobrinho, seu amigo. Sabem que uma sociedade que aprova e usufrui de ferramentas como o RadarBlitzPOA não quer uma legislação mais dura. Quer punição é para os bandidos de verdade, aqueles que moram bem longe, lá na vila.
Por isso sigo com esta dúvida: por que as pessoas ficaram tão chocadas com o atropelamento no Parcão? Acho estranho porque, sejamos francos, todos nós contribuímos para aquilo acontecer.