Porto Alegre

Propostas de lei

Maioria de projetos aprovados na Câmara de Porto Alegre tratam de assuntos de baixo impacto social

Com base em informações do site da Casa, ZH fez um levantamento sobre o que os legisladores da Capital aprovaram desde 2013

Itamar Melo

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A Câmara Municipal de Porto Alegre não costuma ser assídua no noticiário ou nas conversas cotidianas, mas quando aparece é quase sempre de forma estrondosa, com potencial para provocar constrangimento ou indignação. Um exemplo emblemático, que gerou estupefação generalizada, foi a decisão dos vereadores de aprovar, em fevereiro, uma emenda que proibia os restaurantes de disponibilizar saleiros para uso de seus clientes. Não faltaram xingamentos e comentários sarcásticos nas redes sociais. Em outros casos, é o que se percebe como o baixo nível do debate ou o seu caráter supérfluo que irrita o cidadão.

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No episódio mais recente desse gênero, no final de abril, os representantes do povo gastaram horas e horas de sessão, financiada pelo dinheiro do contribuinte, para discutir acaloradamente uma moção de repúdio a dirigentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), por eles terem cedido espaço para a realização de um evento interpretado por alguns vereadores como de apoio ao governo federal. No final, a tal moção de repúdio foi aprovada. Consequência prática? Nenhuma.

A repetição de situações embaraçosas pode levar o eleitor a levantar uma questão: será que Porto Alegre tem um corpo de representantes à altura do seu porte e importância? A resposta não é tão simples. Se compararmos com a câmara de outras cidades, com as assembleias legislativas estaduais e mesmo com o Congresso Nacional (e a sessão de horrores em que os deputados federais aprovaram a abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff é eloquente nesse sentido), não se pode dizer que a Capital gaúcha se destaque negativamente. Projetos de lei esdrúxulos e discursos desconexos parecem estar no DNA do legislativo brasileiro.

Mesmo assim, responder à questão sobre Porto Alegre é relevante porque, em dezembro deste ano, a atual legislatura chega ao fim, e o cidadão terá uma oportunidade para se pronunciar sobre ela nas urnas. A forma mais usual de fazer um balanço do desempenho, ainda que seja parcial e por vezes injusto, é analisar o que os vereadores aprovaram durante o seu exercício. Zero Hora realizou esse esforço. Com base em informações presentes no site da Câmara, fez um levantamento daquilo que os vereadores aprovaram de 2013 para cá e que teve origem em propostas que vieram da própria casa (os projetos que partiram do governo municipal foram deixados de fora).

O resultado mostra que, de um ponto de vista numérico, os vereadores ocuparam-se predominantemente com assuntos que podem ser considerados como de pouco impacto social. Nos três primeiros anos de seus mandatos, as concessões de títulos e homenagens, a aprovação de datas comemorativas, o batismo de ruas, as decisões sobre assuntos internos da casa e as permissões para viagens internacionais do prefeito ou do vice responderam por pelo menos três quartos de tudo o que foi aprovado. Em 2014, chegaram a representar 82% das decisões.

Entre as ruas batizadas, há até uma em homenagem à mãe do prefeito José Fortunati. No campo das homenagens, concedeu-se o título de cidadão emérito a Lupicínio Rodrigues (1914-1974) – talvez com 40 anos de atraso. No que diz respeito a efemérides, os vereadores colocaram no calendário de eventos da cidade a Festa do Ridículo e instituíram datas como o Dia Municipal dos Pretos Velhos e o Dia do Mestre-Sala, da Porta-Bandeira e do Porta-Estandarte.

Todos os demais projetos – aqueles com potencial para gerar maior impacto – representaram uma fatia modesta da produção. E, mesmo assim, uma proporção expressiva deles foi vetada total ou parcialmente pelo prefeito (o que aconteceu com a emenda do saleiro e também com outras esquisitices). Dos que sobraram, muitos são de relevância ou pertinência questionáveis: a criação de um programa de estímulo aos campos de futebol amador, a obrigação de que bares e restaurantes concedam 50% de desconto a quem fez cirurgia para redução do estômago, a instituição de um memorial em homenagem ao chimarrão, e assim por diante.

Esvaziamento das atribuições do legislativo

Eduardo Carrion, professor titular de direito constitucional da UFRGS e da Fundação Escola Superior do Ministério Público, entende que os dados computados por ZH são um reflexo do "esvaziamento" das atribuições do legislativo no país, o que estaria relacionado a uma tradição de "presidencialismo imperial", ou seja, em que o Executivo dá as cartas, e que acaba por se reproduzir nas esferas municipais e estaduais. No caso das câmaras municipais, isso se acentuaria em decorrência da centralização de poderes nos planos federal e estadual. Como resultado, o vereador encontraria pouco espaço para atuar, entregando-se ao clientelismo.

– Muitas vezes, preocupado em preparar a reeleição ou a candidatura a outro posto, o vereador é levado a propor a concessão de homenagens, que podem prestigiá-lo junto a determinada clientela, ou a apresentar projetos de baixa viabilidade ou baixa possibilidade de aprovação, com frequência flagrantemente inconstitucionais, também para dar resposta aos interesses de certas clientelas. É o clientelismo – observa Carrion.

Isso não é algo novo, afirma o professor, e por esse motivo não se deve considerar que os dados da atual legislatura da Capital signifiquem uma queda na qualidade dos vereadores. De fato, a casa parece apenas manter-se fiel a uma tradição cultivada há muitos mandatos. Entre os projetos esquisitos de legislaturas anteriores, capazes de fazer frente ao do sal nesse quesito, podem ser encontradas preciosidades como a lei que obriga os médicos a escrever receitas com letra legível, a proposta que obrigava escolas infantis privadas a instalar câmaras e transmitir ao vivo as aulas para os pais e a que submetia à aprovação estética dos vereadores a instalação de qualquer obra de arte no espaço público.

– Não vejo no legislativo atual diferenças significativas com outras legislaturas. Isso revela que pouco se inova na política. Para se legitimarem, as câmaras precisariam implementar seu papel de controle e de fiscalização do Executivo, de que muitas vezes se omitem. Existem prerrogativas de fiscalização e controle que não são utilizadas – defende Carrion.

Muita legislação, pouco a legislar

Pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole, o cientista político Patrick Cunha Silva realizou, para seu mestrado na Universidade de São Paulo (USP), um exercício comparativo que ajuda a iluminar o comportamento das câmaras municipais. Ele selecionou 27 municípios brasileiros, de variados tamanhos, e fez um levantamento completo de tudo o que foi proposto por seus vereadores no período entre 2001 e 2011. Concluiu que a maior parte dos projetos apresentados podia ser classificada como de interesse social – na área de políticas de saúde, de educação, etc. Porto Alegre, no entanto, aparecia entre as poucas cidades em que isso não se verificava. Na capital gaúcha, preponderaram as propostas de menos relevância – como homenagens, prêmios e batismo de logradouros.

– Essas são propostas muito simples de ser apresentadas e aprovadas. As votações são simbólicas. Várias são votadas no mesmo dia. O fato de serem apresentadas em grande número não significa um esforço. Pelo contrário. No geral, não tem debate. Ninguém vai dizer que não quer que a rua X tenha o nome de alguém – observa.

O cientista político entende que avaliar o tamanho e o peso dessa produção legislativa de pouca relevância social não é um indicador preciso para julgar se o trabalho de uma Câmara é bom ou não. Sua preponderância, diz ele, não significa que os vereadores não estão fazendo o seu trabalho, até porque essa produção não exige esforço e não toma tempo. Mais adequado seria verificar se os projetos relevantes estão sendo feitos.

– Isso é difícil de avaliar porque envolve uma questão subjetiva. Mas a Câmara não precisa ficar no saleiro. Ela pode fazer políticas grandes, e a maior política que ela pode fazer é a política urbana, entrando em questões ligadas ao transporte, à construção, ao uso do solo. Às vezes, um só projeto nessas áreas tem um impacto gigantesco para a cidade.

Cunha Silva faz ainda uma outra observação que ajuda a relativizar a ideia de que a preponderância de projetos inócuos seja de todo negativa. Como já há muita legislação no país, diz ele, o que resta para o legislador é mesmo conceder títulos e dar nomes a ruas. Quando ele quer ir além disso, o que pode fazer é entrar no detalhe do detalhe da lei. E, aí, o risco de fazer bobagem aumenta:

– Talvez o vereador se sinta pressionado a ir para o detalhe porque muito do seu trabalho é invisível: controlar o Executivo, fazer emendas a projetos enviados pelo governo, trabalhar em comissões. O que é visível é o projeto de lei, que vem carimbado com o nome dele. Então surgem projetos malucos. Eles sempre existiram, mas agora têm mais impacto porque o acesso à informação é mais fácil. Que surjam propostas esdrúxulas é normal. O importante é que exista um mecanismo de controle para evitar os excessos. E, nesse caso, o veto do Executivo é esse mecanismo – diz.

Para Dib, o papel do vereador é fiscalizar

Político despediu-se da Câmara em 2012, quando resolveu se aposentar

Quando se fala em Câmara Municipal de Porto Alegre, há um nome incontornável: João Antônio Dib. Ele acumulou 10 mandatos e quatro décadas como vereador da Capital. Em 2012, quando resolveu se aposentar, aos 83 anos, deixou um conselho aos colegas: pediu que não apresentassem tantos projetos de lei.

– Não precisamos fazer mais leis. Já temos muitas, para todas as coisas. O que falta é fiscalizar a aplicação. Se for olhar, em 40 anos como vereador, apresentei poucos projetos. Alguns que são apresentados são supérfluos e desnecessários. No caso do sal, a Câmara podia fazer essa lei. A questão é se precisava – afirma Dib.

Para o ex-vereador, o verdadeiro papel do legislativo deve ser votar o orçamento, fiscalizar sua aplicação e controlar de perto as ações do Executivo.

– O principal papel do vereador é fiscalizar. Eu fiscalizei mais do que legislei. Fiz alguma coisa, mas não estava lá todo dia preocupado em fazer leis – relata.

Um orgulho de Dib é ter apresentado uma emenda à lei orgânica do município determinando que os processos de denominação de logradouros deixassem de ir a plenário, o que provocava perda de tempo. Graças a isso, os nomes de ruas da Capital agora são decididos de forma terminativa nas comissões. Ele também se incomodava com as moções de apoio ou repúdio. Recusava-se a votá-las.

ENTREVISTA

O presidente da Câmara, Cássio Trogildo (PTB), afirma que julgar o trabalho da Casa pela atividade legislativa significa avaliar apenas uma das atribuições dos vereadores. Revela que pretende retirar do plenário propostas de menor relevância, de forma a liberar mais tempo para discussões importantes.

Trogildo é, ele próprio, um exemplo de como decisões da Câmara têm o poder de causar polêmica. Ele foi escolhido pelos colegas para dirigir a Casa apesar de ser investigado pela Justiça Eleitoral por compra de votos. Em 2013, teve o mandato cassado pelo TRE, mas voltou à Câmara amparado em liminar.

A produção legislativa é um bom critério para avaliar o trabalho da Câmara de Vereadores?
É comum se medir a atividade legislativa, e inclusive do próprio parlamentar, pelo número de projetos que ele tem e aprova. Mas todos os legislativos têm três grandes atribuições. Legislar é uma delas. As outras são fiscalizar e discutir as matérias. A legislação tem de acontecer naquilo que é novo. De resto, são ajustes, adequações, mudanças. No ano passado, presidi uma comissão especial que tratava do restabelecimento da zona rural de Porto Alegre. Ficamos 90 dias discutindo o projeto do Executivo. Fizemos visitas à Zona Rural, a sociedade participou. E o projeto não era meu. Como se avalia esses trabalho na Câmara?

O senhor entende que é injusto quando se avalia o trabalho da Câmara pelos projetos de lei?
Eu diria que é incompleto. Porque não está avaliando o conjunto das atribuições. Nessa legislatura, já tivemos 400 sessões ordinárias e 69 sessões extraordinárias. Temos tribuna popular, comunicações de líder de cada bancada com tema livre, comparecimentos. Ou seja, a Casa é um conjunto de atribuições e discussões. Tivemos 28 audiências públicas, 158 sessões solenes, comissões especiais e CPIs, que são um trabalho na parte de fiscalização. E os vereadores têm de estar presentes nas comunidades. O vereador que não fizer isso não volta para cá. Há excelentes vereadores que, às vezes, não retornam porque descuidam desse lado.

Como o senhor responde a quem critica a Câmara por aprovar, predominantemente, projetos considerados de menos relevância?
São dois equívocos. Primeiro é avaliar só uma das atribuições. Depois é, naquela atribuição, haver graus de relevância. Nomes de ruas não nos tomam muito tempo, são decididos nas comissões. Colocar no mesmo nível nome de rua com o que vai para o plenário é fazer uma comparação que não corresponde à realidade. Propus que outros projetos não precisassem ir a plenário. Por exemplo, requerimentos de homenagens, efemérides. Essas indicações vão para o plenário e gastam tempo.

Os vereadores se preocupam que os projetos sejam mal recebidos pela população, como no caso do saleiro?
No caso do saleiro, foi mantido o veto. Não valeu. Era um projeto importante do vereador Delegado Cleiton (PDT) que rediscutia a questão alimentar. A vereadora Sofia Cavedon (PT) veio e fez uma emenda com o saleiro. Não foi bem discutido no plenário. Fiz um projeto, aprovado neste ano, que estabelecia multa em casos de mães constrangidas ou proibidas de amamentar. Pensei: "Será que não é ridículo?". Mas fomos pesquisar e vimos que era relevante.

Muitas vezes, a população entende projetos da Câmara como ridículos. O senhor considera problemático o aparecimento desses projetos?
Um tanto em função dessa quase cobrança de produção de projetos. A casa é rica em discussão, mas isso não é medido. Existe a necessidade do vereador: "Vou ter de arrumar um projeto, senão minha medição será pequena".

Como já temos muita legislação, isso cria dificuldades?
Sim. Sem contar que não podemos legislar no que é atribuição federal, estadual e do Executivo. Sobra pouco para legislar. E o que resta é polêmico. Além disso, o que para uns parece de menos relevância, para outros não é.

Há mecanismos para que projetos que não merecem ir adiante sejam barrados?O poder de veto do Executivo é o mecanismo mais eficiente. Porque pode ter toda a tramitação e a maioria dos votos, mas, quando chega no prefeito, ele veta. Aí, para derrubar o veto, são 24 votos, dois terços da Câmara. Fora isso, tem discussão e o próprio plenário.

Como avaliaria a atual legislatura?
A Casa é pulsante, com uma produção de coisas boas.


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