
Dois anos depois de surgir na cena musical com o elogiado Mulher, o grupo As Bahias e a Cozinha Mineira lançou, no último dia 1º, Bixa. O novo trabalho da trupe liderada pelas vocalistas trans Assucena Assucena e Raquel Virgínia e pelo guitarrista Rafael Acerbi aposta agora no pop eletrônico e dançante.
Se o foco do álbum de estreia era o feminino, em que negras, pobres e transexuais eram as protagonistas, em Bixa a "banda percorre os dois lados de uma só esfera, a humanização e a animalização, para mostrar o que há de animalesco no humano e o que pode ser enxergado enquanto narrativa no animal", diz o material de divulgação do disco. Para compor este universo, foram chamados o produtor Daniel Ganjaman e o baixista Marcelo Cabral, conhecidos por suas contribuições para artistas como Criolo e Elza Soares.
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Se engana, entretanto, quem pensa que As Bahias optaram por um caminho sem riscos nesta nova empreitada com pegada mais popular. Bixa volta no tempo 40 anos e busca inspiração em Bicho (1977), de Caetano Veloso. A referência é direta nos nomes de canções como Urubu Coruja, Coruja Urubu e Pica-Pau, um samba sobre "dois pica-paus se amando no pico de um pau-brasil". Para falar de diversidade, a ironia, uma marca deste álbum, ganha força.
No show que será apresentado nesta quarta-feira, às 21h, no Theatro São Pedro, dentro da programação do 24º Porto Alegre Em Cena, devem aparecer – uma lástima – apenas duas das 10 canções de Bixa: as dançantes Um Doido Caso, o primeiro single do álbum, e Dama da Night, uma referência explícita à vida noturna de São Paulo: "Sou diva, sou diva / A Pauliceia desvairada é meu site / Sou diva, sou diva / Artilharia da pesada, rímel, lápis com batom".
As baladas Universo e Tendão de Aquiles, as duas que mais lembram as canções de Mulher, o reggae Mix e o bolero A Isca têm poucas chances de aparecer no set list. É o caso também de Tez, na qual a crítica social vem forte: "Quero provar do teu corpo a tessitura / Mas sabem que aí eles ditam a postura / Para impedir o meu desejo pela sua tez".
O protesto, entretanto, deve dar as caras em forma de discurso na apresentação desta noite. Em sua última passagem pela Capital com As Bahias, Raquel Virgínia, em meio à empolgação do público no bar Ocidente, discursou. Após receber uma salva de palmas, a artista pediu aos presentes que respeitassem as mulheres trans não apenas quando estiverem brilhando no palco. Mas também no dia a dia, na fila do banco, na padaria, no supermercado, lugares onde o preconceito, infelizmente, ainda impera.
AS BAHIAS E A COZINHA MINEIRA
Theatro São Pedro (Praça Marechal Deodoro, s/nº).
Quarta-feira (13), às 21h.
ENTREVISTA RAFAEL ACERBI / GUITARRISTA
(Por Fabiano Moraes / Especial)
Vocês já estão em encerramento de turnê. Como será o show desta quarta (13) no Theatro São Pedro?
Sim, estamos encerrando os shows com as músicas do trabalho anterior. Foram mais de 120 apresentações até agora. Para o show aí em Porto Alegre estaremos com a banda completa e levaremos alguns instrumentos a mais, uns sintetizadores também. Teremos isso para poder executar as músicas do trabalho novo, que tem uma sonoridade mais pop, algo mais anos 1980. A nossa intenção é tocar duas músicas do disco Bixa.
Como foi o processo de criação e produção do novo disco?
A Assucena e a Raquel são as compositoras. As músicas são delas. Neste disco, fizemos uma pré-produção de seis meses antes de entrar no estúdio. Foi um processo muito intenso, já que a estética pop pode ser algo muito complexo.
Bixa tem a mão dos produtores Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral. Como foi esse encontro e qual a influência deles no resultado final?
Já conhecíamos o trabalho deles e foi um encontro muito rico, uma grande troca de experiências. Trabalhar com esses dois foi muito importante para a banda e para o disco. A produção deles trouxe esse mergulho na MPB e essa leitura mais contemporânea também, com timbres e sonoridades diferentes.
Há uma espécie de linha evolutiva sonora em relação ao primeiro disco e esse?Sem dúvida. O nosso primeiro trabalho é mais anos 1970, tem muitos tons do movimento tropicalista, coisas que remetem a Caetano Veloso, Gal Costa. O tropicalismo deu o tom principal no disco Mulher. Curioso que, durante o processo de trabalho do primeiro álbum, as canções do segundo começaram a aparecer. Mas deixamos as músicas meio guardadas, para o tempo certo.
Você integra uma banda com duas vocalistas trans. Como vê o caso do fechamento de uma exposição de arte em Porto Alegre? (No último domingo, a mostra Queermuseu foi fechada pelo Santander Cultural após protestos de pessoas e movimentos ligados ao MBL.)
Fiquei sabendo pelas redes sociais. Estamos vendo muitos espaços culturais sendo fechados. Estamos em um momento de crise na cultura, e a corda sempre acaba rompendo para o lado dos artistas. Trabalhamos com duas mulheres trans na linha de frente e temos que nos posicionar. Nossa tarefa como banda é dar voz a essas histórias contra o preconceito.