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Nem a escola vencedora do Carnaval 2014 em Uruguaiana escapou da enchente. A quadra de samba da Ilha do Marduque, no bairro Mascaranhas de Moraes, virou piscina, e a água levou rio abaixo um muro da sede da agremiação. Mas são quase nulos os prejuízos da cheia aos foliões quando se olha ao redor da quadra: famílias com as casas submersas que acampam nas calçadas das ruas esburacadas pela chuva.
- Pensamos se iríamos fazer alguma coisa ou abrir o espaço para as pessoas guardarem seus móveis. Decidimos fazer alguma coisa - diz a funcionária pública Soraya Salomão, 53 anos, atual 1ª secretária da escola.
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Na terça-feira, o ginásio da Ilha do Marduque se transformou em um centro de doações. Sobre mesas e cadeiras, roupas e sapatos são agrupados por tamanho. Em uma sala ao lado, caixas de leite, pacotes de massa e sacos de arroz aguardam a hora da refeição. Há uma semana, um grupo formado pela diretoria da escola e amigos deixou de lado a hora do descanso e do lazer para cozinhar e distribuir pratos de comida àqueles que pouco sobrou desde a enxurrada.
Mais de 1,1 mil refeições já foram servidas e, ao todo, 558 cadastradas junto à Defesa Civil foram atendidas pela solidariedade do grupo. Na estreia, o medo era que faltasse comida para o dia seguinte. Agora, eles projetam montar cestas básicas e doar aos afetados pela enchente tamanha a quantidade de doações.
- Todo ano trabalhamos com esse povo para arrecadar fundos para o Carnaval. Se eles passam o ano nos ajudando a fazer a festa, nos mobilizamos para ajudar as necessidades dessas pessoas - explica a presidente da escola, a veterinária Daniela Carús, 35 anos.
Do alto, veja o vídeo que mostra como ficou Uruguaiana:
No primeiro dia, tiveram de cozinhar com um fogão antigo com uma baixa chama de fogo - foram quatro horas para esquentar a panela de sopão. Vinte e quatro horas depois, haviam ganhado um novo forno de amigos que racharam o valor. É difícil quantificar o número de doadores, já que muitos que se mobilizaram arrastaram outro tanto numa rede de solidariedade formada em Uruguaiana.
Supermercados, salões de beleza, academias de ginástica e moradores de todo o canto entraram na corrente de solidariedade. As doações comprovam: quase 3 mil peças de roupas, 612 quilos de arroz e 1,5 mil fraldas descartáveis - fora centenas de outros itens de material de limpeza, higiene e alimentação somente na escola.
- Para mim, foi melhor do que o Carnaval. Comecei a conviver com essa comunidade, que tem outra realidade social, e me apaixonei. Ver aquelas pessoas pegando a comida com as mãos judiadas e as crianças espiando com aqueles olhinhos, não tem dinheiro que pague - conta Daniela.
Na esquina seguinte à escola de samba, a calçada de uma casa verde virou um restaurante improvisado - só que lá, a comida é de graça. Braseiro no chão, fogões, panelões de lentilha e arroz e um vaivém de pessoas ao redor com viandas em punho formam o cenário da cozinha comunitária armada na rua. Como essa, há outras espalhadas por Uruguaiana que dão de comer aos desalojados.
A ideia foi da dona de casa Santa Gutierres, 50 anos. No local, servem café da manhã, almoço, lanche e jantar. Começaram com três pessoas cozinhando e distribuindo - já são 15. Não se trata de uma associação comunitária, mas de moradores que simplesmente se uniram para ajudar ao próximo.
- É uma terapia fazer o bem. É muito triste ver essa gente que perdeu tudo, só de olhar dá um desespero - diz Santa.
Cozinhar ficou por conta do desempregado Antônio Cezar Alves, 50 anos, que aproveitou o tempo livre para ajudar como pode. E quem almoçava pelo meio-dia desta segunda-feira garantiu: trata-se de um ótimo cozinheiro.
- A gente tem de ajudar sem pedir nada em troca. Um dia, que sabe, vamos ser recompensados - reflete Alves.
São exemplos da rede do bem que se formou em Uruguaiana, município que tenta aplacar a dor de 6 mil pessoas que estão fora de casa devido à enchente. A Defesa Civil da cidade orienta que, preferencialmente, as doações sejam encaminhadas à Secretaria de Assistência Social, por onde é feito o repasse já que há um cadastro dos necessitados.
- Uruguaiana tem essa característica: existem rusgas na cidade, mas, quando a coisa aperta, as pessoas realmente ajudam - resume o coordenador da Defesa Civil municipal, Paulo Volter.