
Olhos raiados de vermelho pela noite sem dormir, munidos de cuias de chimarrão e térmicas de café para aguentar a vigília, pais e mães acompanham cada detalhe da limpeza iniciada na manhã desta quarta-feira no interior da boate Kiss, em Santa Maria. Estão em busca de vestígios dos filhos mortos, pedem que a cidade não esqueça a tragédia e que os responsáveis pelo incêndio não fiquem impunes.
Os familiares estão acampados desde a manhã de terça-feira, abrigando-se sob uma marquise, onde dispuseram cadeiras. Como o prédio está encoberto por toldos e isolado, ficam à espreita de qualquer notícia. Às 10h desta quarta, ao perceber uma fresta na estrutura, um dos pais, Flávio Silva, 53 anos, enfiou a cabeça para tentar espiar o que ocorria dentro da boate.
- Ei, ei - gritou ele para os técnicos que faziam a faxina.
Foi imediatamente retirado por um policial militar e uma oficial de Justiça. Ninguém pode entrar ou assistir aos trabalhos de desinfecção. Presidente do Movimento do Luto à Luta, Flávio explica que ouvira um barulho de madeira sendo desmontada, por isso foi conferir o que havia.
- Achei que estavam retirando a fachada da Kiss. Querem descaracterizar o prédio, mas não vamos permitir isso - protesta.
Pais de jovens mortos no incêndio de 27 de janeiro de 2013 estão contrariados com uma tendência que se alastra pela cidade: a de esquecer e não remoer mágoas. Presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, Adherbal Ferreira, 50 anos, alerta que o sentimento é cada vez mais latente:
- Estão querendo abafar. Dizem que chega, deu. Mas ignoram que indiferença gera impunidade.
A promessa é de não esmorecer. Adherbal diz compreender que o processo judicial, em função da complexidade e extensão, ainda não tenha sido julgado.
- O que mais incomoda são as mentiras e as falsidades - lamenta.
Vasculhar as dependências da Kiss, em um trabalho que poderá avançar pelo final de semana, tem sido como remexer uma ferida aberta. Maria Aparecida Neves, a Cida, 55 anos, admite que ainda toma tranquilizante, após o café da manhã, para não chorar de saudade do filho Augusto, fulminado pela fumaça tóxica do incêndio:
- Não quero ficar dependente de remédio, mas fico mal sem ele.
O que impulsiona Cida e outras mães foi ter ido a Buenos Aires, no mês passado. Puderam conversar com uma das fundadoras da Associação das Mães da Praça de Maio, que busca desaparecidos durante a ditadura militar da Argentina. Comoveu-se com a bravura de Nora Morales de Cortiñas, que incentivou as santa-marienses a não desistirem de clamar por justiça.
- Às vezes, dá vontade de largar tudo e sumir de Santa Maria. Mas aquela senhorinha nos disse: "peleiem sempre" - lembra Cida.