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Poderia até ser um conto de fadas às avessas - não fossem os fatos reais. Depois de saírem vitoriosos das eleições de outubro, os novos eleitos começam seus mandatos sob o prisma do desencanto.
O novo governador gaúcho, José Ivo Sartori (PMDB), aclamado na campanha como "Sartorão da massa", suscitou desilusão entre eleitores ao aprovar aumentos para os salários de toda a sua equipe, enquanto afia a tesoura em outros setores para suprir a alardeada falência do Estado - e em menos de 20 dias já teve de voltar atrás em decisões para minimizar o prejuízo político.
A presidente Dilma Rousseff (PT), reeleita em uma das mais acirradas campanhas da história, é criticada por adotar agora o que dizia que seus adversários fariam, incluindo políticas econômicas austeras, aumento de impostos e restrições em direitos trabalhistas - e nem a público veio para se explicar.
O governador do mais poderoso Estado do país, Geraldo Alckmin (PSDB), reeleito em primeiro turno negando peremptoriamente que São Paulo vivesse um racionamento de água, admite enfim o problema - e cogita um novo aumento nas tarifas para tentar conter o agravamento da crise hídrica.
A reversão de expectativas tende a aumentar a descrença da população nos líderes políticos, abreviando as esperanças mesmo entre apoiadores governistas e antecipando para o primeiro mês de governo sentimentos típicos de fim. Mas em que medida essa desilusão generalizada (que se soma aos tantos escândalos de corrupção) representa uma crise de liderança política? E em que grau isso pode representar um risco à própria democracia? As respostas variam conforme o ângulo em que se olha, mas motivos não faltam para preocupação.
Pesquisador do tema, o cientista político José Álvaro Moisés, editor do site Qualidade da Democracia e coordenador do Grupo de Pesquisa de mesmo nome do Instituto de Estudos Avançados da USP, aponta uma série de dados que comprovam o aumento da descrença no sistema político. Em um estudo realizado pelo seu núcleo em 2006, quando questionavam se a democracia do país poderia funcionar sem partidos, 32% dos entrevistados responderam que sim. Em 2014, quando a pergunta foi repetida, o índice saltou para 45%. Variação semelhante se repetiu quando a pergunta era se a democracia poderia funcionar sem o Congresso. E mais de 90% da população não se sente próxima a nenhum partido.
- É muito preocupante não colocar mais fé nas instituições de representação. É uma crise nas relações com as instituições, e isso afeta o coração da democracia. Porque democracia não são só eleições, uma peça importante nesse edifício são fiscalização e controle, que dependem do funcionamento dos partidos e do Congresso - analisa o pesquisador.
E quais as consequências? Para Moisés, essa descrença pode criar uma base social de apoio a iniciativas antidemocráticas. Nas fileiras mais à esquerda, esse sentimento teria como expressão a tática Black Bloc, com violência e quebra-quebra. No outro extremo, à direita, as manifestações de apoio à volta da ditadura militar.
- O papel dos eleitos deveria ser reconstruir essa confiança nas instituições, mas é difícil porque estamos mal servidos de líderes. Dilma mentiu na campanha eleitoral, está fazendo o contrário do que prometeu. E os líderes do Congresso estão envolvidos em casos de corrupção. É como jogar gasolina num incêndio - compara o pesquisador, que é um dos organizadores do livro A Desconfiança Política e os Seus Impactos na Qualidade da Democracia (Edusp, 2013).
Diante de outros olhares, esse poder de fogo é relativizado. Co-organizadora do livro e professora titular do Departamento de Ciência Política da Unicamp, Rachel Meneguello ressalta que essa crise de confiança política não é de hoje, nem uma exclusividade nacional. Colocado em perspectiva, o caso brasileiro não seria uma anomalia entre os estados democráticos. Assim, a própria crise também seria parte do sistema.
- Não há um risco à democracia, ela não está colocada em xeque; o que há é uma significativa insatisfação com a forma como ela vem funcionando, e é isso que aprofunda o terreno das demandas, dos protestos e dos conflitos, mas isso é próprio do sistema democrático - analisa.
E é aí que entra o papel das negociações entre os atores políticos. Para Leonardo Avritzer, professor de Ciência Política da UFMG e presidente da Associação Brasileira de Ciência Política, a equação só pode ser resolvida com uma reforma política. Isso porque, pelo sistema atual, os interesses representados no Congresso são muito diferentes do que o da presidência, o que resulta em práticas questionáveis como a distribuição de cargos e de emendas parlamentares pelo Executivo em troca de apoio no Legislativo. Em outros países, como Grécia e Itália, o partido que elege o governante recebe um bônus que aumenta o número de cadeiras no Legislativo. Assim, é mais fácil chegar à maioria para governar. Atualmente, com tantas coligações esdrúxulas no Brasil, o eleitor que não elege seu candidato tem dificuldade até de saber para onde foi o seu voto.
- No atual sistema, o eleitor quer eleger um ambientalista e acaba elegendo um evangélico - exemplifica Avritzer.
Sem saber bem de quem cobrar, a própria insatisfação do eleitor se fragmenta. Em países com partidos mais fortes e ideologias mais claras, como França (Conservadores x Socialistas) ou Uruguai (Frente Ampla x Colorados), por exemplo, Avritzer observa que é maior o nível de identificação dos eleitores com seus representantes. Mas nem tudo são trevas por aqui. Mesmo com o sistema político problemático, o professor defende que é preciso também celebrar conquistas alcançadas pelo sistema democrático brasileiro, como a estabilidade econômica e a redução das desigualdades.
- O Brasil está muito mais pessimista com sua democracia do que deveria estar - opina, confiante de que nosso regime político tem dentro dele mesmo os mecanismos para resolver seus dilemas.
Entre um cenário adverso e o colapso, o caminho é largo. O cientista político José Álvaro Moisés observa que crises trazem ao mesmo tempo problemas e oportunidades ao exercício do poder.
- Diante de uma crise, o cenário pode melhorar ou piorar, depende da ação dos líderes - conclui.