
Durante oito anos, Everton Soares Pereira, 35 anos, foi um anjo torto. Assim como o famoso personagem da poesia de Carlos Drummond de Andrade, o gaúcho vivia na sombra. Morava na rua, em um barraco de lona preta cravado às margens do Rio Guaíba, em Porto Alegre, e sobrevivia com as migalhas que ganhava guardando carros ou catando lixo.
Era invisível para muitos olhos, até que um ato heroico o tirou do anonimato. No dia 12 de outubro, ajudou a socorrer uma vítima de estupro e passou a ser admirado. Ganhou de uma voluntária, comovida com sua história, três grandes presentes: amizade, emprego e motivação. Armou-se com eles e iniciou uma guerra contra o crack, droga que o arrastou para a rua. Trava uma batalha por dia e, desde que salvou a adolescente abusada, venceu 16.
Na noite de terça-feira, colheu mais um fruto de empenho em mudar de vida. Dormiu pela primeira vez na nova casa, um imóvel pequeno, de apenas um quarto, que alugou em uma vila da Capital com ajuda da chefe. Depois de quase uma década sem lar, Everton pode ser chamado de ex-morador de rua.
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A rotina de andarilho foi substituída pelo trabalho como auxiliar em uma clínica veterinária. Além de manter a limpeza do pátio, onde funciona uma hospedagem para animais, Everton ajuda a cuidar dos bichos, sua grande paixão. A atuação do auxiliar vai desde a reposição de ração ao banho e à secagem dos animais.
- A tosa eu ainda não aprendi, mas quero trabalhar com isso também - planeja Everton.
É graças à ajuda da proprietária da clínica, Silvia Mara, 38 anos, que ele escreve páginas mais alegres na sua vida. A voluntária ficou comovida com a história do morador de rua que socorreu a vítima de estupro mesmo sob ameaça de ser morto a tiros. Depois de ler a reportagem de Zero Hora que contou a história de Everton, em que ele pediu apenas vacinas para os seis filhotes de sua cadela Alemoa, Silvia decidiu ajudar. Foi ao barraco onde ele morava, medicou os animais e ofereceu acompanhamento.
Dias depois, foi a vez de Everton procurar a amiga. Queria uma oportunidade para trabalhar na clínica, por já possuir experiência na área. Antes de sucumbir ao vício, ele atuava em uma cabanha, onde cuidou de cavalos selecionados ao Freio de Ouro.
Amiga de muitos moradores de rua e catadores, por tratar de seus cães e cavalos, Silvia ficou feliz em ter Everton na clínica. Ajudou-o a fazer novos documentos e conseguiu uma vaga temporária em um abrigo para ele. Recentemente, o auxiliou a alugar uma casa, que precisa apenas de um fogão e um jogo de panelas.
- Já dei emprego para outros moradores de rua, mas nunca consegui vê-los vencer o crack. É uma luta muito difícil, já falei para o Everton - relatou Silvia.
Mesmo com essa dificuldade, que já resultou em uma recaída, Silvia mantém a esperança.
- Eu continuo tendo fé, acho que é possível recuperar ele. O problema é que faltam políticas públicas, de engajamento da sociedade. Nada tira o mérito dele, ele continua sendo um herói - resume Silvia.
Everton reencontrou os filhos depois de oito anos
Natural de São Lourenço do Sul, Everton vivia com a mulher e os dois filhos antes de experimentar crack. Quando a dependência química tomou conta de sua vida, foi abandonado pela mulher e decidiu morar na rua.
- Se eu voltasse para a casa do meu pai, ia roubar as coisas para comprar droga. Achei melhor morar na rua - conta.
Everton escolheu as vias de Porto Alegre como lar. Orgulha-se em dizer que nunca roubou para comprar crack. Usava o dinheiro que conseguia catando lixo ou guardando carros nas ruas do Centro e da Cidade Baixa. Desde que saiu de casa, nunca mais procurou a família, por pura vergonha. Tinha medo de não ser aceito pelos filhos.
Após conseguir emprego e um convite para participar do programa "Encontro com Fátima Bernardes", da Rede Globo, Everton criou coragem para retornar a São Lourenço do Sul. Viajou ao município no último final de semana e reencontrou os filhos depois de oito anos nas ruas.
- Foi a melhor coisa da minha vida. Eu sentia muita falta deles - conta emocionado o pai de João, 12 anos, e Arthur, 11.
Sobre a temida reação dos filhos, Everton conta que foi surpreendido positivamente. Os meninos dormiam com fotos do pai no quarto e guardavam imagens dele nos aparelhos de celular, de tanta saudade.
Na madrugada, crack venceu uma batalha
Ficar na nova casa foi a primeira batalha, desde que socorreu a vítima de estupro, em que Everton perdeu para o crack. Durante a madrugada desta quarta-feira, o ex-morador de rua não resistiu e trocou parte da mobília do imóvel por pedras da droga. Mesmo assim, Silvia, que pagou o aluguel do funcionário, não desistiu de ajudar. Para ela, se Everton estiver disposto, a luta contra o crack continua.
- Eu continuo tendo fé, acho que é possível recuperar ele. O problema é que faltam políticas públicas, de engajamento da sociedade. Nada tira o mérito dele, que continua sendo um herói - resume Silvia.
Para a psicóloga do Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas da UFRGS Graciela Gema Pasa, o tratamento da dependência química não necessita obrigatoriamente de uma internação em uma clínica, mas precisa ser acompanhada por especialistas de várias áreas. Para munir-se de armas mais fortes na batalha contra o crack, Everton precisa procurar a rede de apoio, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).
- Existe um esteriótipo no usuário de crack de que é muito difícil largar a droga. De fato, é uma substância com efeitos tóxicos intensos e curta duração, o que faz o usuário querer novas doses rapidamente. Por isso, sempre trabalhamos com a perspectiva da recaída, um risco real, mas é possível trabalhar as situações que podem desencadear o uso e evitar novas recaídas - afirma.
A especialista explica ainda que, no caso de Everton, é importante que ele enfrente a recaída como parte da doença e possa se perdoar. O desafio dele é fazer desta madrugada apenas uma batalha perdida, não toda a guerra.
Em vídeo, conheça a história de Everton: