
A polêmica em torno da exposição Queermuseu — Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, do Santander Cultural, acendeu um debate sobre arte, sexualidade e censura. Em resposta a protestos de entidades e pessoas que acusavam algumas obras da mostra de ofenderem símbolos católicos e fazerem apologia à “pedofilia” e a “zoofilia”, o Santander Cultural anunciou no domingo que encerraria prematuramente a exposição, aberta desde 15 de agosto e que ficaria em cartaz até 8 de outubro.
Queermuseu tinha a ideia de apresentar obras que discutiam diversidade de gênero e de sexualidades, além de questionar o caráter patriarcal das grandes coleções de arte mundo afora. Entre as mais de 270 obras, havia trabalhos de nomes como Portinari, Lygia Clark e Leonilson. Entre as obras mais criticadas, estão a pintura da artista cearense Bia Leite que associa duas crianças às palavras “travesti” e “viada” e uma obra da carioca Adriana Varejão, associada à zoofilia.
A campanha foi encabeçada pelo Movimento Brasil Livre (MBL), que propôs um boicote ao Santander e pediu o fim da Lei Rouanet.
— A partir do momento em que você é parte dessa maneira ofensiva, tendo como alvo, segundo o edital, alunos de escolas públicas e particulares, você não está promovendo igualdade ou tolerância em relação aos LGBT. Isso eu também defendo, que todos sejam respeitados pela sociedade, independentemente de orientação sexual, e tenham os mesmos direitos perante à lei — afirmou Kim Kataguiri, coordenador do MBL.
A Arquidiocese de Porto Alegre publicou um comunicado indicando que a exposição utilizou “de forma desrespeitosa símbolos, elementos e imagens, caricaturando a fé católica e a concepção de moral que enleva o corpo humano e a sexualidade como dom de Deus”.
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A decisão do Santander foi comemorada entre os que se sentiram ofendidos enquanto causou revolta na comunidade artística, que viu o gesto como um ato de censura. Em entrevista à Rádio Gaúcha, o secretário da Cultura de Porto Alegre, Luciano Alabarse, defendeu que “qualquer obra de arte pode ser questionada”, mas “não pode ser censurada”.
— É uma decisão onde todos perdem. Um dos argumentos que ouvi é que não era uma exposição para crianças. Certamente há obras que não são destinadas ao público infantil, mas não é o caso de proibir uma exposição dessa monta, porque eu vi a exposição. Eu queria saber se as pessoas que estão tão veementemente inflamadas contra ela foram lá.
Algumas das obras com nudez explícita são as fotografias de Alair Gomes (1921–1992). Segundo Alexandre Santos, professor e pesquisador do Instituto de Artes da UFRGS, o trabalho de Gomes já foi exposto em Paris, Londres e na Bienal de São Paulo, sem a mesma polêmica. Ele ressalta que as imagens eram precedidas de advertências. No entanto, Santos se coloca radicalmente contra o encerramento:
— Como trabalhar com temas polêmicos como a questão de sexualidade e gênero em um museu sem ferir certos moralismos retrógrados? Os museus e instituições de arte precisam se preparar para enfrentar estes temas com pulso firme, pois são temas do momento contemporâneo que vivemos. Negar isto fechando exposições por pressão de setores moralistas é não estar preparado para receber a arte e a sua liberdade de expressão.
Segundo o Santander, não havia classificação etária na mostra. Quando turmas de alunos a visitavam, monitores alertavam sobre o conteúdo. Na semana passada, foram colados avisos nas portas alertando que havia nudez.
Para a historiadora Daniela Kern, a arte tem uma longa tradição de crítica à religião e de retratar cenas de sexo explícito.
— Na medida em que se inventa um símbolo religioso aparece alguém para conspurcar aquilo de alguma maneira. Boa parte das obras de arte podem ser consideradas desrespeitosas por algum ângulo. Mas o Santander não é uma instituição religiosa, não tem obrigação de respeitar valores religiosos.
O curador de Queermuseu, Gaudêncio Fidelis, afirmou que o fechamento da exposição abre um precedente perigoso. Entretanto, outras exposições já ocuparam as manchetes nacionais por motivos parecidos. Em 2012, o Oi Futuro desistiu de financiar a exposição da fotógrafa norte-americana Nan Goldin, após ter aprovado patrocínio de R$ 300 mil para a mostra. Em 2006, a exposição Erotica passou pelo Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo e, após a inauguração na sede da instituição no Rio de Janeiro, foi encerrada, sem cumprir a itinerância seguinte, até Brasília. O curador e professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP, Tadeu Chiarelli, foi chamado a depor em uma delegacia no Rio. A polêmica se concentrava na obra Desenhando em Terço, da artista Márcia X (1959–2005), que consistia em um pênis desenhado com as contas de um terço.
Chiarelli defende que, em casos assim, é importante que haja diálogo antes que sejam tomadas medidas como fechamento.
— Fechar a exposição é uma atitude arbitrária, de quem não quer discutir. Um centro cultural deve ser um espaço de diálogo. A obra pode ser mostrada num lugar mais discreto, mas não deve ser impedida de ser mostrada.