
Mais de dois meses depois de os primeiros consumidores relatarem alterações no cheiro e no sabor da água em Porto Alegre, o Ministério Público (MP) trabalha com hipóteses mais pontuais que a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) e o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) sobre a ainda incógnita origem do problema. O órgão, que abriu inquérito para investigar paralelamente a situação, acredita que as causas têm relação com efluentes industrias que chegam à casa de bombas da Trensurb.
– Os nossos técnicos, por enquanto, entendem que dificilmente o problema seria causado pelo esgoto doméstico. As condições climáticas para a época não foram das piores, e o tipo de odor também é diferente do que já se verificou em outras situações – explica a promotora do Meio Ambiente, Ana Marchezan, que decretou o sigilo do inquérito para evitar que "eventuais agentes poluidores" se previnam das ações do MP.
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A promotora aguarda por análises técnicas realizadas na casa de bombas e na empresa Cettraliq, na zona norte da Capital. A central, que trata efluentes líquidos de mais de 1,5 mil empresas e despeja o resultado do processo na casa de bombas da Trensurb, a apenas dois quilômetros da captação, já estava na rota de investigações da Fepam, que adotou "medidas preventivas" até que a situação seja esclarecida. No mês passado, o órgão exigiu a colocação de um filtro de ozônio no fim do tratamento da Cettraliq e acordou a retirada temporária de cinco clientes da carta da empresa, entre eles uma indústria que trabalha com fármacos.
Nessa segunda-feira, a empresa enviou à imprensa o resultado de testes encomendados por ela mesma a um laboratório de Santa Catarina. O relatório indica que o número de bactérias actinomicetos encontrados na estação de tratamento da Cettraliq está dentro dos padrões exigidos pela legislação ambiental. Conforme outro teste, realizado por um laboratório de São Paulo, os compostos geosmina e metilisoborneol, produzidos por esse tipo de bactéria, não foram detectados – ainda não se sabe se o problema da água estaria relacionado a esse tipo de substância.
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Embora seja a empresa que mais lança resíduos na rede pluvial, a Cettraliq não é a única autorizada a realizar esse tipo de procedimento na casa de bombas da Trensurb, onde o cheiro, nas proximidades, assemelha-se ao identificado na água. Mas a Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Smam) e o Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) não informam quantas e nem quais seriam essas indústrias. Enquanto a Smam diz que o licenciamento ambiental não especifica o ponto em que uma empresa pode despejar seus resíduos, o DEP afirma não saber quem lança o resultado do tratamento de resíduos na Trensurb. Na zona norte de Porto Alegre, segundo a Smam, mais de 60 companhias estão autorizadas a despejar efluentes no Guaíba após tratamento.
Monitoramento da Fepam destaca presença de esgoto
As suspeitas do MP não dialogam com o que vem sendo divulgado pela Fepam nos monitoramentos semanais realizados desde julho em cinco pontos do Guaíba. O resultado desses exames, segundo o órgão ambiental, indicaria forte presença de esgoto sanitário na água bruta – o que não chega a ser novidade e pouco esclarece sobre a origem do problema. De acordo com especialistas, porém, há parâmetros do relatório que permitem verificar a influência de rejeitos industriais em alguns pontos analisados pela Fepam.
– A diferença entre dois parâmetros, a Demanda Bioquímica de Oxigênio (DBO) e Demanda Química de Oxigênio (DQO) vai dizer se a contaminação vem de um efluente industrial ou de moléculas orgânicas do próprio esgoto. Quando a DQO dá muito mais alta, quer dizer que tem alguma coisa inorgânica ou uma substância orgânica mais complexa que não foi degradada – explica a professora Liliana Féris.
Nos testes feitos pela Fepam, a diferença entre os parâmetros indica presença mais forte de contaminantes industriais em quatro dos cinco pontos de coleta, com destaque para as casas de bombas da Trensurb e a número cinco do DEP, onde, na coleta mais recente, a DQO foi 16 vezes maior que a DBO. Para o pesquisador Fernando Spilki, que realiza análises microbiológicas da água, a causa das alterações no sabor e no cheiro da água na Capital tende a ser fruto de uma mistura de componentes químicos com material orgânico, cuja presença abundante no Guaíba já é conhecida. Ele destaca que, em casos como esse, em que o problema foge ao que está previsto na legislação, é fundamental identificar sua origem para poder garantir que o consumo é seguro para as pessoas.
– Provavelmente não é uma coisa só (que provoca a mudança). O esgoto está lá. Sempre esteve. É preciso buscar uma análise no campo da química analítica, mapear todas as substâncias que há, inclusive, na água de beber. Não está em nenhum livro acadêmico que a "normalidade" da água para a legislação é o ideal para o consumo. Essa água está potável para a lei, mas o que está passando por fora? Há um perigo em se analisar só o que está previsto – alertou.
O Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) aguarda por documentos para dar continuidade ao processo de contratação do laboratório de São Paulo que fará novas análises da água da Capital em busca de respostas. Apesar do desconforto persistente, o órgão destaca que a água segue atendendo aos critérios de potabilidade do Ministério da Saúde e não oferece riscos aos consumidores. Desde o dia 17 de maio, quando o departamento recebeu os primeiros relatos sobre o problema, até sexta-feira, mais de 800 pessoas fizeram reclamações sobre qualidade da água pelo telefone 156.
Procurada para comentar o assunto, a Fepam não retornou às solicitações de entrevista até a publicação da reportagem.