
Quem quer viajar sem gastar muito com hospedagem já pode vir a Porto Alegre. Tipo de acomodação mais popular no Exterior, os hostels ou albergues, que têm como base do serviço os dormitórios compartilhados, ganham espaço na capital dos gaúchos.
Com a chegada da Copa, o número de investidores no segmento aumentou: já passam dos 10 os hostels em Porto Alegre. A proposta de um ambiente mais informal, com cozinha para uso coletivo e áreas de convivência, no entanto, dá a dica: mais que um lugar para dormir pagando barato, quem procura um hostel deve estar aberto ao intercâmbio cultural. É parte inevitável da experiência.
Para avaliar o serviço de hospedagem que, aos poucos, deixa de ser novidade na Capital, ZH virou mochileira por duas semanas. Ao longo deste período, a reportagem se hospedou nos seis hostels indicados pela Secretaria Municipal de Turismo a quem vem a Porto Alegre.
Sem aviso prévio, Porto Alegre Eco Hostel, Hostel Porto Tchê, Casa Azul Hostel, Bom Fim Hostel, Hostel Porto do Sol e Porto Alegre Hostel Boutique abrigaram uma jornalista por uma noite, às vésperas da Copa ou durante o Mundial. Veja o resultado na série de matérias que será publicada ao longo desta semana:
Acompanhe todas as reportagens da série
Dia 1 - Porto Alegre Eco Hostel
Check in: 16h45min
Check out: 10h15min
Um mundo de possibilidades se abre com as mensagens deixadas por hóspedes nas portas e janelas do casarão antigo que abriga o Porto Alegre Eco Hostel, na Rua Luiz Afonso.
À entrada de uma das áreas de convivência, Bob Marley dá seu recado em português. Quase ao pé de uma porta, em frente à recepção, Trotsky ressurge latino, citado em espanhol. Fernando Pessoa permanece lusófono, mas um de seus versos mais conhecidos ganha nova versão - quem poderá julgar um viajante emocionado?
Nem todos são adeptos das citações. Pensamentos machistas, feministas, comunistas, de autoajuda ou simples registros da passagem por Porto Alegre - um "lugar massa", para um, "bela ciudad", diz outro, entre dezenas - capturam os olhares, barrando a indiferença já na chegada.
Mais que um entretenimento - quase obsessivo, no meu caso - as mensagens pareceram uma forma interessante de quebrar o gelo. Depois de ler algumas - voltaria a elas muitas vezes antes de partir - considerei que estava pronta para explorar a casa.
Dia 2 - Porto Tchê: bairrismo acolhedor envolve turistas na cultura gaúcha
Dia 3 - Casa Azul: bom para se divertir, difícil de dormir
Dia 4 - Bom Fim: culturas ricas e café modesto
Dia 5 - Porto do Sol: invasão australiana reforça clima de casa de praia
Dia 6 - Hostel Boutique: só faltou o banho quente Em vídeo, veja o que estrangeiros acharam da mais tradicional bebida gaúcha:
Comecei pela cozinha. Apesar da disponibilidade de utensílios - panelas, copos, bules, coadores, talheres, pratos e xícaras são só alguns - não encontrei nada para aquecer água no fogão. O jeito foi improvisar.
Enchi três copos e abri o micro-ondas. Por um momento, temi ter de provar o primeiro mate com aroma de lasanha congelada da história do chimarrão. A missão, no entanto, foi concluída com êxito.
Identifiquei o primeiro alvo para um contato humano, que, naquele momento, era também o único. Entretido com seu ipad, um norte-americano topou gentilmente bater um papo comigo.
De cabelo e pele levemente queimados pelo sol, colares, brincos e pulseiras, metido em um casaco de moletom e de boné na cabeça, contou ser surfista. Mais: nascido na Califórnia. Estereótipos se confirmam às vezes. A surpresa viria a seguir.
Tanner Dunlop deixou a casa dos pais há quatro anos para trabalhar como chef de cozinha em uma ilha caribenha. Lá permaneceu até meses atrás, quando partiu em viagem pela América Latina. Surfando no Peru, fez amizade com um gaúcho. Acabou incluindo Porto Alegre no roteiro brasileiro.
Dentro de alguns meses, o chef-surfista-mochileiro voltará ao trabalho em outro continente. Fechou contrato de um ano para cozinhar para gringos - não para o tipo que fica em hostel, mas em resort - em uma praia privada na Nigéria.
Da conversa com Tanner até o final da minha curta estadia, todos os estrangeiros que cruzaram o meu caminho estavam no Brasil por causa da Copa. Nenhum assistiria a jogos em Porto Alegre.
O chileno Rodrigo estava exausto. Tinha dormido apenas três horas, e caminhado do Mercado Público até o hostel na Cidade Baixa, feito um pati perro - andarilho, na gíria usada em seu país. No dia seguinte, encararia mais 12 horas de viagem em um ônibus até Campo Grande, de onde finalmente rumaria para Cuiabá.
Dos quatro chilenos hospedados no hostel, o homem de antebraço tatuado, bigode e touca de lã era o único que já conhecia a capital gaúcha. Esteve na cidade em três oportunidades, a primeira delas há 17 anos. Todas de passagem.
- Se eu fosse escolher uma cidade para visitar seria algum lugar da Europa, porque eu gosto da arquitetura antiga, dos prédios históricos. Mas Porto Alegre é uma boa cidade. Parece-me segura, porque posso beber e andar na rua de madrugada e nunca me aconteceu nada - brincou.
Ao mesmo tempo falante e misterioso, ele não quis revelar sua profissão. Não hesitou, porém, em compartilhar seu grande sonho: ser roteirista de cinema.
Eram quase 22h quando pegou uma caneta e aproximou-se de uma das portas. Agachou-se até a mais baixa das dobradiças e rabiscou três palavras. Levantou, buscando outra caneta, "de ponta mais fina". Enquanto escrevia, saí para jantar.
Durante minha passagem pelo hostel ninguém soube dizer quem foi o primeiro a gravar seu recado. O porta-canetas recheado na recepção deixa claro que a atitude não só é bem-vinda, como celebrada por ali.
Ao voltar da janta, rumei para o quarto compartilhado de seis camas no qual eu seria a única a passar a noite. Considerando que o local permite aos hóspedes ficarem com uma chave e desconsiderando que dormia na parte alta de um beliche, senti-me em casa.
Na manhã seguinte, fui procurar o recado do chileno. O contador de histórias e aspirante a cineasta tinha deixado, em letras miúdas, uma frase bicolor: "como buen soñador, confundi la realidade com la ilusion".
Os viajantes passam, mas suas lembranças seguem pulsando logo ali, no coração da Cidade Baixa.
O que diz o Porto Alegre Eco Hostel:
Na verdade, o hostel tem chaleira. Nós normalmente a guardamos no depósito, basta pedir na recepção. Já o microondas, realmente, está na hora de trocá-lo. Quanto ao cheiro de lasanha, os hóspedes muitas vezes não colaboram com a manutenção.Hostels têm funcionários que cuidam da limpeza, mas não podemos limpar a sujeira dos hóspedes a cada cinco minutos. Colocamos regras bem claras na cozinha, mas nem todos as seguem.