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Na semana passada, diretores da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) revelaram que a planta da Cettraliq à beira do Guaíba, suspeita de envolvimento com o gosto e cheiro ruins na água fornecida à população, não voltará a abrir as portas. Ana Pellini, secretária do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, justificou que o local onde a empresa está instalada "é o mais inadequado possível" para o tratamento de dejetos industriais.
ZH debruçou-se sobre centenas de documentos que contam a trajetória da empresa e descobriu que essa decisão não foi das mais céleres: veio depois de um longo período em que a Cettraliq esteve envolvida em uma atribulada história de irregularidades, desrespeito ao ambiente e punições.
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Desde 2008, denúncias recorrentes sobre emissões proibidas na atmosfera e no Guaíba colocaram a companhia na mira da Polícia Federal (PF), da Polícia Civil e do Ministério Público (MP), que abriram inquéritos para investigá-la. Após uma série de laudos e vistorias apontarem que a Cettraliq causou dano ambiental e colocou em risco a saúde da população, o inquérito do MP foi encerrado no ano passado com o acordo de que a empresa teria de mudar sua conduta e pagar uma indenização.
Apesar de todas as falhas e da agora admitida inadequação do local de instalação, a leitura das mais de 700 páginas do inquérito do MP sugere que, ao longo dos anos, a Fepam se empenhou para que a companhia pudesse continuar em atividade. Em 2015, resolveu renovar até 2019 a licença de operação, o que causou espanto entre técnicos da casa. Menos de um ano depois, a fundação estadual teve de suspender o funcionamento da empresa.
2008
O MP começa a investigar
A investigação do MP começou há sete anos, motivada por reclamações sobre o mau cheiro da planta, que, na época, chamava-se Cettrel. Redundou na abertura de inquérito civil, constatou uma série de irregularidades e terminou apenas no ano passado, com a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) e a determinação de que a Cettraliq pagasse uma indenização por danos amientais.
As denúncias remontam a janeiro de 2008, quando o promotor Carlos Roberto Lima Paganella remeteu um ofício à presidente da Fepam à época, Ana Pellini, solicitando que o órgão realizasse uma vistoria "para verificar se a empresa Cettrel está obedecendo aos padrões de emissão atmosférica".
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O promotor concedeu 30 dias de prazo à Fepam, mas a resposta levou 50 dias e não atendeu ao pedido da vistoria. Em lugar disso, uma informação técnica assinada pela engenheira química Mariza Wagner Espinoza afirmava, com base em uma visita feita no ano anterior, que a empresa havia passado por adequações.
Em 5 de maio, Paganella pediu nova vistoria sobre poluição atmosférica, pois o mau cheiro persistia. Em 25 de junho, reiterou a solicitação. A resposta da Fepam só chegou ao MP em 26 de agosto. O documento reconhecia que, no passado, a empresa recebia "sem critérios" todos os tipos de resíduos e efluentes, mas assegurava que, depois disso, "passou por profundas transformações".
Para demonstrar que a Cettrel/Cettraliq estava atendendo às exigências, Mariza apresentou dados produzidos pela própria empresa e o relatório de uma visita que fizera em julho (sem coletas ou medições). Um dos documentos consistia em pesquisa com pessoas do entorno. Feita pela Cettrel, envolvia apenas 12 entrevistados, mas Mariza considerou que era suficiente para "concluir pela continuidade da operação". Na semana passada, em entrevista a ZH, Ana Pellini elogiou esse relatório:
– Remeti uma resposta que considero muito qualificada.
2010
MP é impedido de fazer coletas na Cettraliq
Em novembro de 2010, o caso da Cettrel/Cettraliq teve um desenvolvimento surpreendente. Para dar suporte à apuração dos fatos, os promotores do MP decidiram enviar uma equipe para coletar amostras na empresa.
Os enviados foram Flávio Faccin, engenheiro químico da Divisão de Assessoramento Técnico (DAT) do órgão, e Jerônimo Friedrich, servidor da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Smam). Ao chegar, conforme o inquérito, eles foram impedidos de fazer as coletas – segundo a empresa, por orientação da Fepam.
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Em depoimento formal, Faccin relatou que o responsável técnico da Cettrel, Eduardo Heller Salgado, disse ter sido "orientado pela técnica da Fepam, engenheira Mariza, a não permitir o acesso do engenheiro Jerônimo para nova coleta de material". O impasse levou a um telefonema a Mariza, que teria confirmado não aceitar a ação da Smam e do MP na companhia. Conforme o relato de Faccin, Mariza teria dito que fiscalizava "mensalmente a empresa e que não havia motivos para a coleta de efluentes, que era absurdo o MP dar aval para a ação da Smam".
O representante da Smam aplicou dois autos de infração contra a Cettrel/Cettraliq: pelo lançamento de efluente em desacordo com os padrões (com base em análises laboratoriais de material coletado anteriormente) e por ter impedido a coleta de amostras.
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2011
Relatório apresenta diversas irregularidades
Em janeiro, três engenheiros químicos do MP entregaram a Paganella um parecer técnico sobre vistoria que haviam realizado em abril de 2010. No documento, assinalam uma série de problemas:
– Falta de registro de devolução de carga aos clientes, quando essa carga apresentasse compostos orgânicos voláteis (VOCs) em valor elevado
– Inconsistência no controle dos efluentes recebidos
– Falta de alguns dos dados exigidos pela licença
– Discrepâncias nos valores dos VOCs que entravam e saiam em um equipamento chamado de lavador de gases
– Odores significativos
– Pontos críticos que não estavam contemplados pelos sistema para controlar o mau cheiro
– Riscos à saúde da população no entorno
Os engenheiros recomendaram, no relatório, a realização de uma auditoria ambiental por empresa independente. Em novembro, depois de analisar o a proposta de TAC elaborada pela Fepam, os técnicos do MP sugeriram implantar um método para avaliar a quantidade de VOCs nas cargas recebidas dos clientes. O item constou recentemente das exigências da Fepam para que a empresa pudesse retomar suas atividades. Em maio de 2012, os técnicos do MP calcularam em R$ 275.549 o valor que a Cettraliq deveria pagar a título de compensação pelo dano ambiental causado.
2013
Empresa é autuada durante tratativas de TAC
Quando o TAC parecia estar se encaminhando para a assinatura, novas suspeitas recaíram sobre a Cettraliq. Um fiscal da Smam, Rafael Vogt, relatou formalmente ao MP ter realizado, entre os dias 11 e 18 de abril de 2013, vistorias na região onde se localiza a empresa, motivadas por denúncias de contaminação. O relato era de presença de um líquido de cor escura na rede pluvial.
Em visita à casa de bombas da Trensurb, constatou que "uma substância preta e com forte odor era bombeada pelas máquinas e despejada no Lago Guaíba" e disse haver "suspeita que estejam sendo lançados efluentes não tratados pela Cettraliq, prática que aconteceria há mais de 10 anos, conforme o relato dos funcionários da Trensurb" e de "dois técnicos da Fepam" ouvidos por ele. As declarações dos funcionários motivaram uma nova inspeção, às 23h30min do mesmo dia 11. Novamente, Vogt e outros servidores constataram o lançamento do efluente. No dia seguinte, retornaram à área e, na calçada dos fundos da Cettraliq, sentiram um forte odor emanando da empresa, "semelhante ao que sentimos às margens do Lago Guaíba". O fato foi comunicado a Renato Chagas da Silva, chefe do departamento de controle da Fepam. Ele disse para a Smam agir, porque a Fepam estava com o prédio interditado, "inviabilizando qualquer atividade por falta de estrutura".
Paganella considerou graves as informações coletadas pela Smam e enviou uma cópia do depoimento de Vogt à Polícia Civil. Em maio daquele ano, a Fepam assumiu o caso. Dias depois, o órgão estadual autuou a Cettraliq por contaminação da rede pluvial por cromo, cobre, manganês e zinco. A multa foi de R$ 8 mil.
Em janeiro daquele ano, o Instituto Geral de Perícias (IGP), no âmbito do inquérito da Polícia Civil, já havia constatado valores de cobre acima do estabelecido, observando que a ingestão de sais de cobre "pode causar vômito, letargia, anemia hemolítica aguda, dano renal e hepático e, em alguns casos, morte".
2015
Dano ambiental e renovação da licença
Em novembro de 2014, os engenheiros do MP fizeram uma vistoria na empresa, concordaram que praticamente todas as medidas de adequação solicitadas haviam sido realizadas e, a pedido da Cettraliq, recalcularam a indenização por danos ambientais. O valor ficou em R$ 45.290,59.
Em maio de 2015, o TAC foi assinado, estabelecendo que a companhia pagaria em quatro vezes a indenização, atualizada para R$ 47.650,59 – a última parcela foi paga em abril de 2016.
Apesar do histórico, a Cettraliq teve a Licença de Operação renovada junto à Fepam poucos meses após a assinatura do TAC.
O relatório técnico – com ressalvas e ponderações sobre o passado de poluições – foi assinado pelo engenheiro ambiental Rogério Giordani da Silva e submetido a chefias do Departamento de Controle da Fepam, que concedeu a permissão. A decisão gerou críticas. O analista ambiental especializado em recursos hídricos Diego Carrillo, dirigente da Associação de Funcionários da Fepam, acha positivo o esforço para agilizar licenciamentos, mas não do caso de empresas com histórico de problemas ambientais.
– O que deveria ter ocorrido é um cronograma de desmobilização e transferência dessa empresa – critica Carrillo.
2016
Sem alvará e com Habite-se dos anos 1930
Em junho deste ano, a prefeitura resolveu analisar a situação da Cettraliq e fez descobertas interessantes. A empresa não passou por Estudo de Viabilidade Urbanística (EVU), não tem alvará de localização e utiliza um Habite-se da década de 30, concedido para outra finalidade. Tudo isso a colocou como irregular para o município.
Em agosto, a prefeitura rejeitou as defesas apresentadas pela Cettraliq e interditou o empreendimento de forma cautelar (preventivamente) por considerar que a atuação da empresa oferecia risco à população e ao ambiente.
No mesmo mês, a Fepam havia suspendido as atividades da planta por causa da emissão de cheiro. No começo de setembro, informou que a companhia não voltará a abrir no local, considerado inadequado para a atividade. A afirmação, depois de uma década de problemas e menos de um ano depois da renovação da licença, causou estranhamento em Diego Carrillo, dirigente da Associação de Funcionários da Fepam:
– Nos surpreendeu a objetividade da presidente da Fepam em afirmar, pela primeira vez que temos notícia, da inadequabilidade locacional desta empresa.
O diretor-geral do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), Antônio Elisandro de Oliveira, acredita que a Fepam tomou medidas durante as investigações das alterações na água "em determinados momentos", mas creditou o fim do problema à intervenção do Ministério Público (MP). Em julho, o órgão abriu um inquérito civil para investigar o caso.
– Nós nunca tivemos dúvida de por onde estava entrando essa carga. Sempre dissemos que as alterações relativas à presença de esgoto foram refutadas. Não fomos além disso porque não nos competia. Temos alegria em ver o desfecho dessa situação. A partir da parceria com o MP, a coisa andou mais rápido. Tanto é que a Fepam interditou a empresa depois que o MP disse que o problema tinha origem industrial – disse o titular do Dmae.
Laudos da Fepam sobre Cettraliq desmobilizaram Polícia Federal
Em 2008, quando o MP começou sua investigação, um outro inquérito a respeito da Cettrel/Cettraliq foi aberto pela Polícia Federal (PF). Os agentes foram à planta no âmbito da Operação Mãos Dadas, que desmontou um esquema de fraudes contra a União. À época, os proprietários da empresa, Wolf Gruenberg e Betty Gruenberg, chegaram a ser presos – eles sofreram condenações em primeira instância e recorreram da sentença. Na companhia, os policiais depararam com denúncias de crime ambiental.
Segundo o depoimento de uma funcionária à PF, a companhia trataria apenas uma parte dos resíduos recebidos, descartando o resto no Guaíba, sem tratamento. A depoente também acusou a empresa de receber mais efluentes do que teria capacidade de tratar.
A denúncia resultou em mandado de busca e apreensão, mas as amostras coletadas tiveram de ser descartadas – a PF não encontrou um laboratório para a análise. Para o delegado Aldronei Rodrigues, órgãos acionados pela PF, como a Fepam, não mostraram empenho em investigar a companhia. O delegado classificou a contribuição da Fepam no caso como "quase nenhuma".
Após dois peritos criminais que acompanharam o mandado de busca e apreensão recomendarem uma "fiscalização aprofundada", a Fepam remeteu relatórios iguais aos enviados ao MP, citando melhorias nos processos e destacando o "cumprimento dos padrões de emissão". Sem avanços e diante das justificativas do órgão ambiental, o inquérito foi arquivado em abril 2011.
Contraponto
Em 30 de agosto, Zero Hora encaminhou à Cettraliq um e-mail com oito perguntas relacionadas ao histórico de irregularidades da planta, ao TAC assinado com o Ministério Público e à relação da empresa com a Fepam. A empresa disse que não responderia aos questionamentos pois já havia concedido entrevista ao colunista Tulio Milman no dia anterior. A equipe de reportagem observou que se tratavam de matérias diferentes, mas a Cettraliq reafirmou a posição de não responder às perguntas.
Dias depois, enviou uma carta de quatro páginas ao jornal. O texto critica a equipe de reportagem, que, na opinião da empresa, "ultrapassou todos os limites éticos ao apresentar questionamentos eivados de sugestões, acusações e proposições desprovidas de base empírica". A carta diz ainda que não existe "nenhuma prova técnica (...) de que a Cettraliq tenha responsabilidade pelas alterações de sabor e odor da água" e que "dirigentes e colaboradores nunca foram processados ou condenados por crimes ambientais".